- “A Capela do Rato não me aceitou como amigo no Facebook!”. Com estas palavras, o Nuno, o meu grande amigo Nuno, hoje tentou confortar-me depois de lhe ter confessado a minha grande frustração por ainda não ter conseguido ser amigo de uma vizinha no Facebook. A loura do prédio em frente não quer nem saber quem eu sou, e o Nuno faz-me saber que não estou só na rejeição.
É assim o meu amigo Nuno.
Bem, mas minhas razões para ser amigo desta mulher, independentemente de ser uma mulher bonita, eram as mais nobres: Temos mais de quinze amigos em comum. Apesar de a minha contagem já ir para lá dos 1500, aquelas quinze figuras são pessoas que conheço bem. Além disso, gostava de poder falar a uma pessoa com quem me cruzo várias vezes por dia no Centro Comercial ao pé de casa. Para não dizer que, quando saio de carro, vejo-a muitas vezes à janela, a estender roupa: posso até dizer que sei quais são as suas cores preferidas, incluindo as da roupa interior.
É pois uma figura em destaque nas minhas rotinas…
Cheguei a pensar em dizer-lhe adeus ao longe, inclusive no estacionamento da praia quando há dias a vi também por lá. Também quase comentei uma foto onde ela aparecia, no mural de uma amiga comum, de punho erguido, na festa do Avante. Faria alusão à minha colecção de t-shirts do Che Guevara; o fervor revolucionário ainda hoje emanado pelo Comandante, poderia, quiçá, quebrar o gelo, e ajudar-me a conseguir arrancar-lhe um sorriso.
Mas contive-me…
E a verdade é que tudo isso deixou de ter importância para mim a partir do momento em que a Capela do Rato dá uma nega ao meu amigo Nuno. A sensação de ver o meu grande amigo ser rejeitado por uma capela, deixando de fora uma humilde ovelha como ele, é demasiado pesada para mim. Faço ideia ele, que é um poeta e um tipo sensível.
Bem, e depois, para compensar, hoje dei de caras com uma velha amiga, e recuperei o seu contacto, naquele mesmo Centro Comercial, onde, diariamente, sinto o fel e experimento a rejeição.
Horas antes, conheci uma mulher encantadora, que me fez sentir o George Clooney durante um bom bocado, apesar do café que bebemos não ser Nespresso. Por isso, não me posso queixar! Deus, excepto no Facebook, hoje escreveu direito por linhas tortas.
E pode ser até que dê uma palavra pelo Nuno lá na Capela do Rato. Era justo. Lá isso era.
Porque não reler esta carta que Jean-Paul Sartre, o ateu mais teológico de sempre, enviou do seu cativeiro (Campo de Concentração) aos padres que admirava. Trata-se de uma meditação sobre a pintura que gostaria fazer do Natal...
"A Virgem está pálida e olha para o menino. O que seria necessário pintar neste rosto é um encantamento ansioso que não apareceu senão uma vez sobre uma figura humana. Porque Cristo é o seu menino: a carne da sua carne, o fruto das suas entranhas. Cresceu nela durante nove meses e dar-lhe-á o seu seio (...) e, por momentos, a tentação é tão forte que ela esquece que ele é Deus. Aperta-o nos seus braços e diz: 'Meu pequenino.'
Mas noutros momentos ela suspende esse movimento e pensa: Deus está aqui. E fica possuída pelo horror religioso, por este Deus mudo, por esta criança terrificante. Todas as mães ficam assim suspensas, por um momento, diante deste fragmento rebelde da sua carne que é o seu filho, sentem-se em exílio diante desta vida nova que se faz a partir da sua e habitadas por pensamentos estranhos. Nenhuma criança, porém, foi tão cruelmente e tão rapidamente arrancada à mãe: aquela criança é Deus e ultrapassa sempre tudo o que Maria possa imaginar.
Penso que também há momentos, rápidos e fugidios, nos quais ela sente, ao mesmo tempo, que Cristo é seu filho e que ele é Deus. Ao olhar para ele, pensa: este Deus é meu menino. Esta carne divina é a minha carne. Ele é feito de mim, tem os meus olhos e esta forma da sua boca é a forma da minha. Parece-se comigo. Ele é Deus e parece-se comigo.
Nenhuma mulher teve, desse modo, o seu Deus só para ela, um Deus pequenino que se pode tomar nos braços e cobri-lo de beijos, um Deus quentinho que sorri e que respira, um Deus que se pode tocar e que ri! É num destes momentos que eu pintaria Maria, se fosse pintor."
Tradução de Frei Bento Domingues, O.P. Tirado do Público online, dia 21/12/03
Primeiro cito as declarações de Pinto Balsemão à Comissão de Ética, no passado dia 3 de Março.
“Talvez por ser jornalista, a minha atitude foi diferente quando fui primeiro-ministro. E lembro-me de, nessa altura, o meu jornal, o Expresso, me atacar, e de me atacar de uma forma algo freudiana”.
Agora passo a contar esta minha pequena minha história.
Aconteceu certa noite, entre 1981 e 1983. Não me recordo exactamente em que dia, em que ano, nem a que propósito tocou o telefone nessa noite. Mas tocou. E fui eu quem o atendeu.
- Está lá? Boa noite...
- Boa noite! Estou a ligar para casa do Manuel Beça Múrias?
- Sim, quem fala?
- Francisco Pinto Balsemão...
Com o coração a bater forte, respondi:
- Vou já chamar o meu pai...
E lá fui a correr até à sala da televisão chamá-lo.
Quando lhe disse quem era ao telefone, o meu pai não me pareceu nervoso. O semanário O Jornal, em 1981 era um jornal de referência e principal concorrente do Expresso. O meu pai era uma das suas figuras mais destacadas. E Pinto Balsemão ao telefone, mesmo sendo primeiro-ministro, não era nada de chocante para aquele tempo.
Fiquei na sala. Largos minutos depois o meu pai voltou.
Voltou a sentar-se à frente da TV, e disse-me antes que eu desatasse a fazer perguntas:
- O Expresso anda a dar-lhe porrada...
Nem meia hora depois adormeceu, como sempre adormecia, a meio de um filme...
Uma pequena pedra surgiu-me no caminho. Mais parecia um biscoito queimado. Chamou-me a atenção porque era quase uma réplica daqueles de biscoitos de canela que os meus pais e eu comíamos quando passávamos férias na Ericeira. Um verdadeiro clone da preciosa mercadoria que o senhor da loja tirava de umas grandes latas vermelhas e redondas. Baixei-me e apanhei-a como se fosse uma pepita de ouro. Apenas uma diferença em relação aos biscoitos, para além da cor da pedra, que neste caso andava entre o preto e o cinzento. Um dos lados era macio como um pedaço de sabão azul e branco. O outro, por oposição, era áspero e rugoso, como uma vulgar pedra, dessas que se encontram aos montes na praia.
Foi precisamente essa assimetria, suave versus áspera, que me chamou a atenção. A nossa vida a dois foi assim, tal e qual. Um lado duro e outro suave. Episódios de contornos românticos, alternando com outros que só aconteceram para nos ferir; e se fomos (como fomos?) capazes de nos ferir mutuamente, como mestres nesta arte de magoar…
Encontrei esta pedra simbolicamente na praia onde cresci. Onde me fiz aquele rapaz que ainda sou. O que sonhava com a sua Menina do Mar, polvos, caranguejos e peixes. Tive ali a visão dos meus cães, correndo atrás dos enormes bandos de gaivotas na maré vazia. Escutei a sirene do Farol da Torre parecendo responder à do apito de um cargueiro que passava a barra: "Sou daqui!" repeti cá para comigo tantas vezes esta tarde! E sou dali minha querida!
Ali fazíamos fogueiras à noite. Ali perdemos todos a virgindade debaixo das "chatas" que os pescadores deixavam voltadas com o casco para cima durante a noite. Ali acertávamos as nossas contas de jovens lobos. Ali – tu e eu – tantas vezes passeámos tentando ainda ultrapassar as nossas divergências. Já lá não está o barquito onde pela primeira vez os nossos corpos se entenderam.
Resta-me esta pequena pedra que agora tenho na mão. Esquizofrénico pedaço de rocha que tão bem ilustra a nossa vida a dois. Que fazer Matilde? A nossa vida anda aqui como as marés da Barra. Ora enchente, ora vazante. O sol e a lua fazendo turnos, como sempre. Os dias passam e nós…aqui…umas vezes aproximando-nos outra afastando-nos.
Passeiam aqui hoje casais – como nós o fizemos; há crianças de cócoras apanhando conchinhas, cascas de mexilhão para levarem para casa. Adivinho-lhes o pensamento: Tal como já eu em criança aqui brincava, eles sonham. Olham o mar e sonham com as mesmas baleias a saltar-lhe à frente. Sonham com as suas sereias como eu sonhei com as minhas aqui neste mesmo areal. É aqui, um cenário destes, que imagino acontecer no dia depois de me ir deste mundo.
Simbolicamente deixei a pedra-biscoito enterrada na areia com o seu lado bom virado para cima. Porque acredito, meu amor querido, que ainda um dia esta pedra irá parar à tua mão. Porque és a minha rainha das sereias. Sempre o serás, e tu, lá bem no fundo, sabes isso.
Dentro de dias é posto à venda o meu primeiro livro.
São setenta crónicas escritas entre Janeiro e Abril de 2009 para o Rádio Clube durante os tratamentos que fiz antes de uma operação para remover um tumor no recto.
O cancro que mudou a minha vida
Esta é a minha última crónica da sala de espera. Estou a escassos dias da minha operação. Estou a muito pouco tempo de me livrar disto, espero eu, para sempre.
Vou ter tratamentos de quimioterapia no futuro, mas agora já com o objectivo de eliminar riscos de um regresso da doença.
E não podia terminar estas crónicas sem dizer aqui uma coisa.
Quero que saibam que este cancro mudou a minha vida para sempre; e mudou-a para melhor. Porque senti algo que nunca sentira antes.
Senti o afecto, um enorme afecto por parte das pessoas que me ouviram, que me escreveram, que choraram por mim.
Isso fez de mim um homem melhor.
Escrevi todas estas crónicas aprendendo a ser esse homem melhor.
E senti também, como jornalista, que este é o meu lugar. O jornalismo é a minha casa. Gosto de olhar o mundo e de o contar.
Contar histórias de homens e de mulheres que sofrem, como eu sofri, levando-nos todos a sentir que não estamos sós, que somos uma família de gente que passou, que passa pelas mesmas coisas.
As mesmas dores, as mesmas angústias, os mesmos abandonos, mas também as mesmas explosões de amor.
Algumas vindas de onde e de quem nada esperava.
E isso foi bom.
Isso fez da minha vida uma vida melhor!
Um dia, um médico meu amigo disse-me que, por vezes, é o próprio destino que se encarrega de nos mudar a vida quando nós não somos capazes de o fazer sozinhos.
Há alguns meses, sentia essa incapacidade de mudar.
Até que me diagnosticaram este cancro.
Mas hoje é esse cancro que tem os dias contados, não eu.
Regresso em Maio, meus queridos ouvintes do Rádio Clube Português.
É o mês dos meus anos, o mês em que vim a este mundo, a esta vida que adoro, para a viver junto das pessoas que também adoro.
Gente junto de quem gosto de me sentir e estar a seu lado.
Mas também gente, como você que me ouve agora, e que não conheço: os ouvintes do Rádio Clube Português, que me têm dito e escrito: «Pedro sinto-me como se fosse da sua família.»
É tão bom sentir isso, não imaginam…
E não imaginam como isso muda a vida de uma pessoa.
A terminar…
Daqui envio também um grande e forte abraço a todos os meus colegas do Rádio Clube Português, com a promessa de voltar em Maio.
Um Maio de amores, como na canção do Zeca Afonso: «Maio, Maduro Maio».
Em Novembro, a propósito do meu despedimento do Rádio Clube, lembrei-me de acrescentar uma carta ao livro "Cartas a um Jovem Jornalista", da autoria de Juan Luís Cebrian, CEO da PRISA, grupo de Comunicação Social ao qual pertencem o Rádio Clube e a TVI, ou seja, um dos protagonistas escondidos do negócio falhado da venda da estação de Queluz..
Na obra um velho e experiente jornalista escreve a Honório, aspirante à profissão, convidando-o a algumas reflexões sobre o jornalismo.
Li na diagonal. E achei quelhe faltava algo. Aqui fica a minha sugestão ao sr. Cebrian para que a obra fique realmente completa.
Nunca pensei é que este "post" que fiz no meu blog "Novas Crónicas da Sala de Espera" ganhasse de novo actualidade.
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Madrid, 15 de Novembro de 2009
"Caro Honório,
Tantos anos passados, desde a nossa última conversa...
Lamento saber, sinceramente, que estás para abandonar a nobre profissão de jornalista. Fiquei atónito (mas quem sou eu para te criticar quando também eu segui um caminho (quase) divergente do jornalismo ao aceitar ser o CEO da PRISA).
Não imaginas o quanto me sinto frustrado com essa tua decisão! Uma perfeita bizarria, devo dizer-te.
É de ti, da tua geração, não da minha, que depende o dia de amanhã do jornalismo. O futuro não é, realmente, um futuro fácil; mas os compromissos que o jornalismo moderno continua a assumir, ainda apontam o mesmo caminho de sempre: o caminho da intervenção cívica e da defesa da verdade.
É isso que faz com que o jornalismo continue a viver uma vida saudável, fazendo funcionar a Democracia, vivendo vidas separadas do poder, dos interesses; até da indústria da propaganda e das relações públicas. É isso que faz com que as pessoas continuem a acreditar no que escrevemos.
Não é de facto uma tarefa fácil. Mas tu estavas à altura. Não foi por acaso que te escolhi entre tantos outros...
Tens razão quando dizes que não está ao nosso alcance limparmos todas as lágrimas de todos os olhos do mundo, mas a obrigação do jornalista é tentar. Tentar sempre!
Como diria Martin Luther King, só conseguem montar-nos, se nós andarmos de costas curvas. E tu nunca serias homem para tal. Daí a minha frustração, caro Honório, pois confiava em ti para seres um dos guardiões da independência do jornalismo, defendendo-a do arregimentar das mentes, defendendo-a dos interesses e das agendas dos políticos, dos grandes grupos económicos.
Mas respeito a tua decisão. Deixas esse combate para outros. Estás no teu direito! Afinal de contas, tentaste escrever uma história que comprometia gente poderosa com influência sobre o jornal onde trabalhavas. Não é caso único. Em Lisboa aconteceu o mesmo a uma colega tua.
Concordo quando citas o General George Washington (como vês este é um velho problema). A citação - que Al Gore também faz na sua obra "O Ataque à Razão" - contém a metáfora perfeita para me explicares como realmente te sentes: "Se os homens forem impedidos de expressar os seus sentimentos sobre um assunto susceptível de acarretar as consequências mais graves e mais alarmantes que a humanidade possa imaginar, a razão não nos serve de nada; a liberdade de expressão poderá ser retirada e, mudos e silenciosos, seremos conduzidos como cordeiros ao matadouro."
Nem de propósito. Chegam-me de Lisboa as ondas de choque de um despedimento de um jornalista que está doente com cancro. Um jornalista que apesar da doença não perdeu a coragem, e contou, diariamente, com era a sua vida nas salas de espera dos hospitais onde fez tratamentos.
Trabalhou até à véspera de ser operado. E foi despedido quando já se preparava para voltar. A rádio onde tudo isto aconteceu pertence ao grupo PRISA que dirijo.
O verdadeiro jornalista não deixa de sentir-se moralmente fraco quando deixa que o obriguem a dizer uma coisa quando pensa outra.
Por outras palavras, não me sinto jornalista quando a própria máquina que dirijo, esmaga, atropela, mata o futuro de alguém como este nosso camarada de armas, e eu sou obrigado a virar a cara para o lado, deixando na gaveta as notas de uma história de desumanidade, ou mesmo de terrorismo, que eu próprio teria querido ser o primeiro a contar se estivesse ainda a trabalhar numa redacção!
Por isso mesmo, parte, amigo Honório. O jornalismo de que te falei nesta longa carta, se calhar morreu!