Daqui a pouco o Presidente da República inicia a ronda de audiências aos partidos parlamentares sobre a formação do novo Governo, como determina a Constituição. De forma pouco auspiciosa, Cavaco Silva começa por ouvir um partido fantasma: o Partido Ecologista Os Verdes, que sempre usou o PCP como barriga de aluguer. Em quase 30 anos de existência, nunca concorreu autonomamente a eleições.
O que dirão os "dirigentes" do PEV ao Presidente? Naturalmente, o mesmo que logo a seguir dirá a delegação do PCP. Eis, pois, um caso singular na nossa democracia: um partido estereofónico, que debita sempre duas vezes a mesma mensagem. Quando um diz mata, o outro diz esfola. E vice-versa.
José Sócrates e Paulo Portas saudaram publicamente o vencedor da noite, Pedro Passos Coelho. Outros dois líderes partidários, Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa, não o fizeram - pelo menos que eu tivesse ouvido em directo nas televisões. Há pequenos gestos que dizem muito sobre o espírito democrático dos políticos e sobre a forma como encaram o veredicto popular expresso nas urnas.
ADENDA: Leitor atento informa-me que Louçã dirigiu parabéns ao vencedor. Fica feita a rectificação.
1. Ruptura com a política de direita, "que há mais de três décadas compromete o futuro do País".
2. Recolocar no centro da orientação política a afirmação de um desenvolvimento económico soberano de Portugal.
3. Valorização do trabalho e dos trabalhadores através de uma significativa melhoria de salários.
4. Reforço das prestações sociais e dos serviços públicos.
5. Defesa da produção e da soberania nacional.
6. "Ruptura com o processo de integração capitalista europeia".
7. Fim do Programa de Estabilidade e Crescimento e outras políticas comuns - agricultura, pescas, indústria e comércio externo.
8. Uma nova política que "rompa com a conivência e subserviência face às políticas da União Europeia e da NATO".
9. Pleno emprego como objectivo central das políticas económicas.
10. Defesa de um "papel determinante do Estado" nos sectores estratégicos, designadamente na banca e nos seguros, na energia, nas telecomunicações e nos transportes, "ao serviço do desenvolvimento e da justiça social".
11. Suspensão do processo da privatizações em curso.
12. Defesa do meio ambiente, do ordenamento do território e "promoção de um efectivo desenvolvimento regional, assente no aproveitamento racional dos recursos".
13. Respeito pela autonomia das autarquias locais e reforço da sua capacidade financeira.
14. Criação das regiões administrativas.
15. Combate e punição da corrupção, crime económico e tráfico de influências.
16. Combate à profunda recessão da economia nacional.
17. Política de apoio ao cooperativismo e constituição de um Fundo Nacional Cooperativo.
18. Reforma agrária nos campos do sul do País destinada a "liquidar a propriedade latifundiária".
19. Defesa dos baldios e da pequena propriedade florestal.
20. Aproveitamento das potencialidades agrícolas de Alqueva.
21. Aproveitamento das potencialidades e recursos do mar.
22. Definição de uma estratégia agro-produtiva orientada para mais produtividade e produção.
23. Promoção do agro-turismo.
24. Afirmação das regiões de turismo enquanto entidades ligadas ao poder local e regional.
25. Defesa da pesca costeira nacional, com especial relevo para a pesca artesanal.
26. Apoio à indústria conserveira e a promoção das conservas portuguesas, com rotulagem de origem e a certificação de produto de qualidade.
27. Reanimação de importantes indústrias básicas, como as metalomecânicas e electromecânicas produtoras de bens de equipamento pesados, as metalurgias, as químicas e petroquímicas de base e indústria de construção e reparação naval.
28. Urgente intervenção nos preços da energia – electricidade, gás natural e combustíveis líquidos.
29. Uma política fiscal que inverta o peso dos impostos indirectos face ao directos.
30. Eliminação dos benefícios às SGPS, tributando todas as mais-valias.
31. Taxa efectiva mínima de IRC na banca de 20%.
32. Redução das taxas de IVA, designadamente com a taxa normal a 19%.
33. Uma política de transportes que privilegie o transporte público e colectivo de passageiros.
34. Elaboração de um Plano Nacional de Transportes.
35. Construção do novo aeroporto de Lisboa.
36. Terceira travessia do Tejo em Lisboa, entre Chelas e Barreiro.
37. Promover o acesso efectivo dos deficientes ao mercado de trabalho.
38. Subida do salário mínimo nacional para pelo menos 600 euros até 2013.
39. Subida real dos vencimentos dos trabalhadores da função pública nos próximos quatro anos, "com compensação das perdas verificadas na última década".
40. Revogação da legislação que integra o Código de Trabalho e a legislação laboral da Administração Pública.
41. Regulação da situação dos trabalhadores com falsos recibos verdes.
42. Redução progressiva do horário de trabalho semanal para as 35 horas "como contributo para criar postos de trabalho e combater o desemprego".
43. Defesa do sistema público e universal de segurança social.
44. Salvaguarda do direito à reforma aos 65 anos e possibilidade da sua antecipação sem penalizações para carreiras contributivas de 40 anos;
45. Expansão do sistema público de educação pré-escolar.
46. Distribuição gratuita dos manuais escolares para todo o ensino obrigatório, já a partir do próximo ano lectivo.
47. Revogação da Lei do Financiamento do Ensino Superior.
48. Defesa e reforço do Serviço Nacional de Saúde.
49. Pagamento a 100% da remuneração nas licenças de maternidade.
José Sócrates, como é costume, levava a estratégia bem montada. Pretendeu fazer do frente-a-frente desta noite na SIC, com Jerónimo de Sousa, uma espécie de ensaio geral para o decisivo debate de sexta-feira com o presidente do PSD. E atacou o secretário-geral comunista como fará certamente com Pedro Passos Coelho: utilizando o programa eleitoral do seu antagonista como arma de arremesso. Isto permitiu-lhe, durante alguns minutos, marcar o tom e o ritmo da contenda. "Já debati aqui com dois líderes que não tinham programa. Hoje estou a debater com um líder que tem o mesmo programa de há dois anos", ironizou o líder do PS, reduzindo as propostas comunistas a três grandes ideias-força: a reestruturação da dívida ("igualzinha à do Bloco de Esquerda"), sair do euro ("isto nem o Bloco de Esquerda!") e um amplo programa de nacionalizações. Rematando em bom estilo: "Onde iria buscar dinheiro para comprar estas empresas [a nacionalizar]? São mais de 50 mil milhões de euros."
Esta tirada do líder socialista teve o condão de acicatar Jerónimo. Que não tardou a dar-lhe o troco: "José Sócrates, quando ouve falar em nacionalizações, fica com urticária. Mas foi lesto a nacionalizar o BPN, ficando os milhões de milhões de custos para o povo português." Isto assinalou uma certa viragem no debate - e raras vezes, a partir daqui, voltámos a ver Sócrates na ofensiva. Pelo contrário, o secretário-geral do PCP conseguiu ultrapassar Paulo Portas e Francisco Louçã na capacidade de forçar o líder do PS a justificar o seu controverso currículo governativo. Lembrou o abortado cheque-bebé de 200 euros acenado por Sócrates na campanha legislativa de 2009, o "corte de mais de 600 mil abonos de família", o congelamento de salários e de pensões, e"uma política fiscal que carrega sempre contra os mesmos". Curiosamente, ao invocar a obra feita, o secretário-geral socialista limitou-se a mencionar medidas assumidas entre 2005 e 2009 - do complemento solidário para idosos à reforma da segurança social.
O debate foi vivo e pelo menos num sentido também foi esclarecedor: a unidade da esquerda portuguesa continua a ser um sonho adiado. O PCP persiste em manter as portas fechadas a qualquer entendimento com os socialistas. "Os três partidos - PS, PSD e CDS - têm um programa comum", justificou Jerónimo. Sócrates, se vencer a 5 de Junho, tem um problema sério pela frente: nenhuma força política, à esquerda e à direita, parece disposta a coligar-se com ele. "Deve haver um governo maioritário", sublinhou o líder socialista, que em resposta à moderadora, Clara de Sousa, deixou um recado ao Presidente da República lembrando uma enraizada "tradição" na política portuguesa: "Quem ganha as eleições é que vai para o Governo." Mas a sensação que transmitiu neste debate é que para ele isso será um quebra-cabeças. O que sucede, em boa verdade, por culpa própria: em nenhum momento do frente-a-frente Sócrates fez um esforço mínimo para cativar um voto comunista. Pelo contrário, chegou a revelar - por palavras e esgares - alguma arrogância, nomeadamente quando acusou Jerónimo de ser "incapaz de compreender" a lógica do sistema fiscal português.
São pormenores. Mas que ajudam a perceber por que motivo José Sócrates é hoje a figura mais solitária da cena política nacional.
Jerónimo - «O candidato José Sócrates tem uma forma esquisita de defender o estado social.»
Sócrates - «O PCP cometeu um erro de análise ao aliar-se à direita para provocar uma crise política.»
Jerónimo - «O ónus está sempre nas costas de quem trabalha.»
Sócrates - «Reestruturar a dívida significa calote. Pagar-se-ia com pobreza, desemprego, miséria e falências.»
Jerónimo - «Ainda havemos de assistir a José Sócrates a defender a reestruturação da dívida.»
Clara de Sousa - «Porque é que este memorando [com a Comissão Europeia e o FMI] não foi traduzido oficialmente em versão portuguesa para que os portugueses o percebam?»
José Sócrates - «Estou convencido que essa tradução existe. (...) Se não há, devia haver.»
Debate? Que debate? Quem teve a paciência de escutar até ao fim o frente-a-frente desta noite, na RTP, entre Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa certamente não descortinou qualquer motivo de fundo para o PCP e o Bloco de Esquerda se apresentarem em listas separadas a estas eleições. É certo que o secretário-geral comunista, há uns dias, disse numa entrevista desconhecer qual é a ideologia do BE. Mas ao ser desafiado pelo jornalista Vítor Gonçalves a reeditar estas dúvidas, Jerónimo preferiu chutar para canto. Ninguém diria que estes dois partidos já estiveram envolvidos em acesos despique verbais. Ninguém diria que houve até uma época em que o Avante! mimoseava os bloquistas com farpas bem aguçadas.
Esse tempo, pelos vistos, passou. Bloco e PCP convergem hoje no essencial: são do contra. Contra o Governo socialista, contra a alternativa à direita, contra a intervenção do FMI em Portugal, contra o memorando de entendimento com a União Europeia, contra o programa de privatizações, contra o pagamento da dívida pública sem uma renegociação imediata. O moderador do debate bem tentou encontrar algumas divergências dignas de nota entre eles, mas o resultado foi quase nulo. Jerónimo ainda mencionou a política europeia, distanciando-se do "federalismo" do Bloco. E - ao contrário de Louçã - não considera "questão tabu" a possibilidade de Portugal dizer adeus ao euro para regressar ao escudo. Há ainda uma questão de estilo: "Nós não fulanizamos", disse o secretário-geral comunista. Com Sócrates ou sem Sócrates, o PS estará sempre na mira das críticas do PCP. A tal ponto que Jerónimo foi incapaz de manifestar qualquer preferência entre um governo liderado pelos socialistas e um Executivo de maioria social-democrata.
Eis um dos nós cegos da política portuguesa: enquanto à direita a política de alianças é clara, à esquerda o PS está condenado a mirar-se ao espelho. O PCP só admite "coligar-se" com um partido fantasma: Os Verdes. E o Bloco parece hoje apenas apostado em duplicar o histórico papel de consciência crítica desempenhado pelos comunistas na democracia portuguesa, evitando qualquer aproximação aos socialistas com vista à construção de alternativas de governo.
Esta noite, de qualquer modo, Louçã mostrou-se um pouco mais acutilante ao procurar transformar o frente-a-frente numa espécie de prolongamento do debate da noite anterior com o secretário-geral socialista. Insistiu em denunciar a falta de transparência do PS na questão da taxa social única, antecipando que os socialistas preparam uma "alteração drástica" à actual contribuição das entidades patronais para a segurança social. E foi capaz de descer um pouco mais ao concreto na questão da dívida, propondo um "fundo de resgate" que prevê a criação de um imposto das mais-valias urbanísticas e um imposto sobre as transacções da Bolsa. A emissão de títulos europeus de dívida é outra solução proposta pelo Bloco. Jerónimo foi mais vago: este frente-a-frente confirmou que a economia não é o seu forte. Esteve melhor na intervenção final, marcada por um toque pessoal, raro nos comunistas:"Eu vivo melhor do que os meus pais e pensava que as minhas filhas iriam viver melhor que eu."
Nesse momento, o secretário-geral do PCP falou por milhões de pessoas. A maioria dos portugueses pensava o mesmo que ele. A realidade, infelizmente, vai-nos demonstrando o contrário dia após dia.
Portugal não é para jovens: o velho PCP é mais forte que o "jovem" BE.
Até porque em época de crise e éfe éme i o que mais interessa à maioria dos portugueses não são as questões minoritárias (por muita dignidade e, até, urgência que tenham) mas as consequências nas carteiras. São os problemas "velhos" que determinam as próximas legislativas - e são os jovens a não querer assumir uma clivagem entre gerações.
Em Portugal, a foice e o martelo valem mais do que a ganza - e até os jovens sabem disso.
P.S.: Não andarão agora as sondagens a subestimar o BE como dantes subestimavam o CDS? Até ao lavar dos cestos ainda se contam votos...
Foi um debate correcto e civilizado, quase cordial. Os portugueses, sobretudo nesta fase, apreciam os políticos que não transformam um estúdio de televisão num ringue de boxe. Neste aspecto, o secretário-geral do PCP e o presidente do PSD marcaram pontos esta noite na TVI. E Pedro Passos Coelho até surpreendeu ao concordar quatro vezes com o seu antagonista: sobre a dureza das medidas que deverão ser aplicadas, a necessidade de redução dos custos das empresas, as críticas à política "irresponsável" do Governo de José Sócrates e a confiança no veredicto do povo português a 5 de Junho. Pareceu mais preparado neste frente-a-frente, sobretudo nas questões macro-económicas, e refutou com eficácia a acusação de Jerónimo de Sousa sobre as responsabilidades partilhadas entre sociais-democratas e socialistas em matéria de privatizações ao exibir um gráfico colorido que apontava o PS como destacado campeão neste campeonato.
Passos Coelho teve sorte de principiante. Calhou-lhe, neste seu debate inaugural como dirigente político, talvez o adversário mais adequado. PCP e PSD não partilham eleitorado, o que ajudou a amenizar o tom da contenda. O panorama será bem diferente em futuros debates, designadamente com José Sócrates e Paulo Portas. Ainda assim, faltou algum conteúdo político à prestação do líder social-democrata. Passos transmite por vezes a sensação de estar a candidatar-se a ministro da Economia, não ao cargo de primeiro-ministro. Falta-lhe sobretudo conferir um suplemento de esperança ao seu discurso: não basta acertar no diagnóstico, como a sua antecessora, Manuela Ferreira Leite, aprendeu amargamente na campanha de 2009.
A economia constitui precisamente o calcanhar de Aquiles de Jerónimo, que parece sempre um pouco desconfortável neste tema. O secretário-geral dos comunistas manteve-se fiel aos dogmas do seu partido: é contra toda e qualquer privatização das empresas públicas, diaboliza o capital estrangeiro e alude à "renegociação da dívida" sem fornecer soluções credíveis. O ponto mais acutilante da sua mensagem centra-se nos temas sociais: é-lhe fácil colocar-se do ponto de vista dos mais desfavorecidos - um aspecto tanto mais relevante quanto o nível de vida em Portugal tem vindo nos últimos anos a divergir da média europeia. A boa utilização que faz da linguagem popular é outro aspecto interessante do seu discurso. Um exemplo: "Nas críticas ao Governo PS, só se perdem as que caem no chão."
Algumas questões importantes ficaram sem resposta concludente. O secretário-geral comunista rcusou emitir preferência entre um governo socialista e uma coligação PSD/CDS. E Passos foi incapaz de reagir convictamente quando a moderadora, Judite Sousa, o questionou sobre os motivos da sua aparente incapacidade para fazer descolar os sociais-democratas nas sondagens. "Não lhe sei dizer. Não sou analista de sondagens. Não vou deter-me nessa matéria", limitou-se a dizer.
Resposta naturalmente insuficiente, dada a importância da questão. Resta-lhe, como atenuante, ser caloiro em debates políticos. Esperemos para ver como se portará no próximo.
Os debates eleitorais para as legislativas de 5 de Junho arrancaram esta noite, na RTP, opondo o secretário-geral do PCP ao presidente do CDS-PP. Foi um bom frente-a-frente: sem chavões nem retórica, sem tempos mortos. Paulo Portas e Jerónimo de Sousa surgiram em estúdio com tácticas opostas: o democrata-cristão emitiu várias declarações de simpatia em relação ao líder comunista, sem retribuição. Começou logo por lhe chamar "meu caro colega", revelou aos telespectadores que ele e Jerónimo se dão "pessoalmente bem" e chegou a lembrar que o seu grupo parlamentar votou favoravelmente uma resolução do PCP contra a degradação do salário mínimo. Prestou até homenagem ao partido da foice do martelo acentuando que "só há dois partidos que falam a sério sobre agricultura na Assembleia da República - o CDS e o PCP."
O secretário-geral comunista optou, pelo contrário, por marcar distâncias: tratou sempre o seu interlocutor por "doutor Paulo Portas" e não tardou a lembrar que o CDS é um dos partidos signatários do recente memorando de entendimento com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia. Um acordo que o PCP considera de lesa-pátria. Portas deu-lhe réplica com uma advertência que repetiu quatro vezes e se tornou a frase central do debate: "Não se engane de adversário, Jerónimo de Sousa."
Ambos veteranos de debates eleitorais, Jerónimo e Portas confirmaram méritos anteriormente revelados em televisão. O líder comunista transmite sempre uma imagem de convicção e sinceridade, apesar de não evitar a repetição de clichés discursivos que soam algo estafados - expressões como "um governo patriótico e de esquerda" e "os que menos têm e menos podem". O presidente democrata-cristão tem uma grande destreza argumentativa, bem patente quando rebateu com eficácia as soluções comunistas alternativas ao resgate financeiro de 78 mil milhões de euros, nomeadamente a venda de fundos públicos para comprar dívida pública: "Isso não excederia cinco mil ou seis mil milhões de euros. Portugal precisa quatro vezes mais que isso."
Jerónimo apela sobretudo à consolidação do seu eleitorado clássico, mais envelhecido: "Quem trabalhou uma vida inteira tem direito à sua reforma." A Portas, obviamente embalado pelas boas sondagens, interessa roubar votos tanto a eleitores irritados com a governação socialista como com a inépcia dos sociais-democratas em assumir-se como oposição credível. Lembrou que o seu grupo parlamentar nunca aprovou PEC algum e só deu luz verde ao acordo com a troika por este motivo muito simples: "Já não havia dinheiro para pagar salários e pensões."
O moderador do frente-a-frente, Vítor Gonçalves, é um bom jornalista mas falta-lhe visivelmente rodagem e rotina para uma missão deste género: em certas ocasiões mais parecia estar ali na qualidade de cronometrista. Não havia necessidade: Jerónimo e Portas são dois políticos bem experientes que nunca deixam de ter a lição estudada. Nenhum deles precisa que alguém lhes indique as horas. O líder comunista sabe que é tempo de ajustar contas nas urnas com um Bloco de Esquerda em queda contínua. O dirigente máximo do CDS não tem dúvida de que chegou o momento de regressar ao Governo, seja com quem for. Está escrito nas estrelas e tem data marcada: 5 de Junho, ao cair da noite.
Jerónimo - "Este acordo [com o FMI e o BCE] tem a assinatura do CDS para o congelamento dos salários e pensões, e para o aumento das taxas moderadoras. Não dá a cara com a careta."
Portas - "Não se engane de adversário, Jerónimo de Sousa."
Jerónimo - "Como é que os bancos, com mais lucros, pagam metade dos impostos?"
Portas - "Eu não fico parado quando o meu país fica a semanas de não pagar salários e pensões."
Jerónimo - "Há momentos em que é preciso dizer não. Não quisemos passar credencial nem reconhecer legitimidade a quem quis impor condições leoninas à nossa soberania."
Portas - "Quem manda em Portugal é o povo português que vai votar a 5 de Junho."
Jerónimo - "Ó doutor Paulo Portas, aqueles que muito dificilmente chegarão ao Reino dos Céus continuarão a estar no paraíso deixando o inferno à maioria dos portugueses."
Portas - "Eu não sou pela luta de classes. Sou pelo compromisso entre trabalhadores e empregadores."
Jerónimo - "Muitos portugueses sérios não estão no meu partido."
Portas - "Gente séria há em todos os partidos, Jerónimo de Sousa.
PCP e Bloco de Esquerda recusaram qualquer encontro com a delegação europeia composta por membros do Fundo Monetário Internacional, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu que se encontra em Lisboa a avaliar as condições do resgate financeiro a Portugal. Ao contrário do que fizeram os restantes partidos parlamentares, as associações patronais, as confederações sindicais (incluindo a CGTP-Intersindical) e diversas personalidades, como Boaventura Sousa Santos, coordenador do Observatório da Justiça. Os dois partidos da esquerda radical portuguesa perderam uma oportunidade irrepetível de dizer olhos nos olhos, cara a cara, tudo quanto pensam destes técnicos financeiros e quais as soluções que preconizam para retirar Portugal da situação de quase bancarrota em que vivemos, com o colapso iminente das finanças públicas. Agiram ambos sem qualquer sentido de responsabilidade, preocupados apenas em garantir a habitual vozearia de rua e de telejornal.
Que o PCP assim proceda, é normal. Os comunistas portugueses sempre foram profundamente eurocépticos, combateram desde o início a integração de Portugal na CEE, contestaram Maastricht, a diluição das fronteiras, a transferência de competências para a Comissão Europeia e a adopção da moeda única. São internacionalistas de cartilha mas profundamente nacionalistas na prática, utilizando uma retórica semelhante à dos partidos da direita populista e xenófoba que também não quer "os estrangeiros" a perturbar a sacrossanta "soberania nacional": ainda há dias um dirigente comunista comparava, no Avante!, qualquer político português que dialogue com o FMI a uma "espécie de Miguel de Vasconcelos dos dias de hoje".
Quando o BE procede exactamente como o PCP, pelo contrário, está a trair o espírito de cidadania europeia que parecia animá-lo desde a fundação, no final da década de 90: uma das principais diferenças programáticas entre comunistas e bloquistas residia na relação com a Europa. Mas também aqui o Bloco tem vindo a tropeçar no próprio pé - na sequência da fracassada tentativa de apropriação da candidatura presidencial de Manuel Alegre e do monumental tiro de pólvora seca que foi a moção de censura apresentada em Fevereiro contra o Governo socialista. O Bloco, que devia assumir-se como o parceiro de coligação natural com o PS para possibilitar maiorias parlamentares de esquerda, segue afinal uma estratégia de bunker, decalcada do PCP, que se esgota na gritaria contra todos os governos sem ter jamais a pretensão de influenciar qualquer solução governativa: ser um partido de protesto é quanto lhe basta.
A última coisa de que o sistema português precisa é de um segundo partido comunista, apenas um pouco mais citadino e com vestuário de marca. Se for por essa via, o Bloco torna-se um partido inútil - e não admira que as sondagens estejam a castigá-lo. Convém recordar que o PCP já tem um apêndice - o dito partido Os Verdes, que merece figurar no Guinness Book por existir há quase 30 anos sem nunca ter concorrido isoladamente a uma eleição. Por mim, confesso, custar-me-ia ver um dia Francisco Louçã e Luís Fazenda no lugar de Heloísa Apolónia a trautear o hino da CDU.
Devia haver limites para o cinismo político e a duplicidade moral na forma como os partidos portugueses analisam os acontecimentos internacionais. Mas na perspectiva do PCP, pelos vistos, não há. Na Soeiro Pereira Gomes continua a prevalecer a regra maquiavélica: há que pôr de lado qualquer escrúpulo de consciência no apoio aberto aos tiranos de estimação. Sabendo do que a casa gasta, mesmo assim foi com espanto que li na edição do Avante desta semana a defesa despudorada da ditadura líbia em duas páginas dedicadas ao noticiário internacional. Enumerando as revoltas que se registam no mundo árabe, o jornal oficial dos comunistas portugueses assinala as «movimentações de massas» que «alastram» por todo o Magrebe e Médio Oriente, «de Marrocos a Omã, contra os regimes políticos vigentes e por melhores condições de vida».Mencionam-se estes países: Argélia, Bahrein, Marrocos, Iémen, Omã, Koweit, Arábia Saudita, Iraque e Egipto.
E a Líbia? Pois aqui é ao contrário. Títulos desta mesma edição do Avante: «Não à agressão imperialista na Líbia»; «Líbia cercada pelo imperialismo»; «Ingerência comprovada»; «Comissário demarca-se de posição sobre Líbia». O semanário do PCP vibra com as revoltas árabes em toda a parte menos no país do coronel Kadhafi, à revelia de quase toda a comunidade internacional. Garante que a oposição ao ditador líbio é instrumentalizada pela CIA, indigna-se por ver «as afirmações de Kadhafi continuamente deturpadas» nos órgãos de informação ocidentais e alerta na primeira página: «A NATO procedeu a exercícios militares no Mediterrâneo».
Ponho de parte esta prosa repugnante, que por algum resquício de pudor surge sem assinatura no jornal do PCP, e abro a edição internacional do Independent. A manchete, assinada por Kim Sengupta, enviado especial do jornal britânico a Ras Lanuf, submetida a raides da aviação de Kadhafi, diz quase tudo: «Why won't the world help us?'». E releio a análise de Lluis Bassets publicada quarta-feira no El País, significativamente intitulada «Contra Kadhafi, guerra justa». Destaco isto:
Poderia recomendar este texto excepcional ao jornal dos comunistas portugueses, assumidamente pró-líbio. Mas não vale a pena: vigora ali a mentalidade da Guerra Fria e a veneração ilimitada aos ditadores de esquerda. Cometa Kadhafi as atrocidades que cometer, será sempre ali enaltecido. Que outra coisa seria de esperar de um partido e de um jornal capazes de elogiar o carcereiro da Coreia do Norte, Kim Jong-il?