A propósito das recentes legislativas, não faltou quem desenterrasse uma frase proferida por Francisco Sá Carneiro em 1979, num contexto muito diferente do actual: "Um governo, uma maioria, um presidente." A frase deve situar-se à época: Portugal tivera 11 governos em escassos cinco anos, não produzira nenhuma maioria parlamentar estável desde a entrada em vigor da Constituição de 1976 e necessitava com urgência de reformas políticas profundas - com destaque para o fim do Conselho da Revolução como tutela militar das instituições civis, algo aberrante na Europa Ocidental.
Sá Carneiro e os seus sucessores políticos imediatos cumpriram estas metas: dotaram o País pós-revolucionário da primeira maioria parlamentar sólida e alcançaram um acordo político com o PS que possibilitou a revisão constitucional de 1982, pondo fim ao Conselho da Revolução após sete anos de existência e reduzindo os poderes discricionários do Presidente da República em benefício do Parlamento, em sintonia com a esmagadora maioria dos países da Europa comunitária.
O fundador do PSD não sonhava com um país político monocolor: pretendia, isso sim, que as sérias divergências institucionais que manteve com o presidente Ramalho Eanes (divergências que partilhou com outros primeiros-ministros, como Mário Soares e Pinto Balsemão) fossem dirimidas com o reforço da componente parlamentar no singular sistema político português. Foi um combate que travou com frontalidade, em prol do que entendia serem os interesses nacionais.
Passos Coelho nunca utilizou esta expressão nem faria qualquer sentido recorrer hoje a ela, fosse qual fosse o inquilino de Belém. Nem Cavaco Silva é apropriável por esta maioria nem o Presidente terá certamente a ilusão de que influenciará a actividade governativa fora dos estritos limites que a Constituição lhe impõe. Por outro lado, a maioria de que Passos dispõe no Parlamento está longe de ser monocolor: PSD e CDS são partidos autónomos, com programas políticos diferenciados e estratégias muito próprias, como hoje ficou bem patente na falhada eleição de Fernando Nobre para a presidência da Assembleia da República.
Basta o que referi para esvaziar de sentido esta frase no momento actual. Deixemo-la no contexto histórico a que pertence e tentemos interpretar os factos sem o recurso a fórmulas gastas. Aliás não é só a política que necessita de renovação: a análise política também.
Foto: António Ramalho Eanes e Francisco Sá Carneiro em 1980
1. Ruptura com a política de direita, "que há mais de três décadas compromete o futuro do País".
2. Recolocar no centro da orientação política a afirmação de um desenvolvimento económico soberano de Portugal.
3. Valorização do trabalho e dos trabalhadores através de uma significativa melhoria de salários.
4. Reforço das prestações sociais e dos serviços públicos.
5. Defesa da produção e da soberania nacional.
6. "Ruptura com o processo de integração capitalista europeia".
7. Fim do Programa de Estabilidade e Crescimento e outras políticas comuns - agricultura, pescas, indústria e comércio externo.
8. Uma nova política que "rompa com a conivência e subserviência face às políticas da União Europeia e da NATO".
9. Pleno emprego como objectivo central das políticas económicas.
10. Defesa de um "papel determinante do Estado" nos sectores estratégicos, designadamente na banca e nos seguros, na energia, nas telecomunicações e nos transportes, "ao serviço do desenvolvimento e da justiça social".
11. Suspensão do processo da privatizações em curso.
12. Defesa do meio ambiente, do ordenamento do território e "promoção de um efectivo desenvolvimento regional, assente no aproveitamento racional dos recursos".
13. Respeito pela autonomia das autarquias locais e reforço da sua capacidade financeira.
14. Criação das regiões administrativas.
15. Combate e punição da corrupção, crime económico e tráfico de influências.
16. Combate à profunda recessão da economia nacional.
17. Política de apoio ao cooperativismo e constituição de um Fundo Nacional Cooperativo.
18. Reforma agrária nos campos do sul do País destinada a "liquidar a propriedade latifundiária".
19. Defesa dos baldios e da pequena propriedade florestal.
20. Aproveitamento das potencialidades agrícolas de Alqueva.
21. Aproveitamento das potencialidades e recursos do mar.
22. Definição de uma estratégia agro-produtiva orientada para mais produtividade e produção.
23. Promoção do agro-turismo.
24. Afirmação das regiões de turismo enquanto entidades ligadas ao poder local e regional.
25. Defesa da pesca costeira nacional, com especial relevo para a pesca artesanal.
26. Apoio à indústria conserveira e a promoção das conservas portuguesas, com rotulagem de origem e a certificação de produto de qualidade.
27. Reanimação de importantes indústrias básicas, como as metalomecânicas e electromecânicas produtoras de bens de equipamento pesados, as metalurgias, as químicas e petroquímicas de base e indústria de construção e reparação naval.
28. Urgente intervenção nos preços da energia – electricidade, gás natural e combustíveis líquidos.
29. Uma política fiscal que inverta o peso dos impostos indirectos face ao directos.
30. Eliminação dos benefícios às SGPS, tributando todas as mais-valias.
31. Taxa efectiva mínima de IRC na banca de 20%.
32. Redução das taxas de IVA, designadamente com a taxa normal a 19%.
33. Uma política de transportes que privilegie o transporte público e colectivo de passageiros.
34. Elaboração de um Plano Nacional de Transportes.
35. Construção do novo aeroporto de Lisboa.
36. Terceira travessia do Tejo em Lisboa, entre Chelas e Barreiro.
37. Promover o acesso efectivo dos deficientes ao mercado de trabalho.
38. Subida do salário mínimo nacional para pelo menos 600 euros até 2013.
39. Subida real dos vencimentos dos trabalhadores da função pública nos próximos quatro anos, "com compensação das perdas verificadas na última década".
40. Revogação da legislação que integra o Código de Trabalho e a legislação laboral da Administração Pública.
41. Regulação da situação dos trabalhadores com falsos recibos verdes.
42. Redução progressiva do horário de trabalho semanal para as 35 horas "como contributo para criar postos de trabalho e combater o desemprego".
43. Defesa do sistema público e universal de segurança social.
44. Salvaguarda do direito à reforma aos 65 anos e possibilidade da sua antecipação sem penalizações para carreiras contributivas de 40 anos;
45. Expansão do sistema público de educação pré-escolar.
46. Distribuição gratuita dos manuais escolares para todo o ensino obrigatório, já a partir do próximo ano lectivo.
47. Revogação da Lei do Financiamento do Ensino Superior.
48. Defesa e reforço do Serviço Nacional de Saúde.
49. Pagamento a 100% da remuneração nas licenças de maternidade.
Tenho a maior consideração por vários socialistas. Mas, neste momento, apetece-me destacar três: Ana Gomes, José Medeiros Ferreira e Manuel Maria Carrilho. Foram eles que pregaram no deserto clamando contra a falta de debate interno no PS, alertando contra sucessivos erros de governação hoje evidentes aos olhos de todos e acentuando os aspectos mais negativos do carácter autoritário de José Sócrates - um autoritarismo sem fundamento pois nem sequer pode justificar-se pela competência governativa.
Há outras vozes lúcidas de socialistas - a começar pelo patriarca do partido, MárioSoares - que incluem alguns destacados autores de blogues cuja leitura não dispenso. Mas são vozes demasiado isoladas face ao descalabro dos erros cometidos por Sócrates no Executivo e na própria direcção do partido. O PS, outrora a força partidária portuguesa com mais fecundo debate interno, reduziu-se há muito a uma câmara de louvores ao líder que teve o seu baptismo político como militante da Juventude Social Democrata. O último congresso socialista foi um esclarecedor exemplo de como neste partido hoje não se debate nada nem sequer se admite um erro: é a política a copiar as piores características de certos clubes de futebol, em perpétua e acrítica veneração aos líderes.
Escrevo hoje estas linhas a pensar em 5 de Junho. Por não ter a menor dúvida de que alguns socialistas que não esboçaram o menor reparo ao actual secretário-geral do partido serão os primeiros a exigir a demissão de Sócrates no provável cenário de uma derrota eleitoral. Enquanto Ana Gomes, Carrilho e Medeiros Ferreira iam lançando sinais de alerta, ao longo destes anos, eles mantiveram-se em silêncio ou alinharam mesmo no coro de ladainhas ao líder. Reservavam-se para o momento em que o veriam enfim aparentando alguma fragilidade: a política, como sabemos, é fértil nestas súbitas erupções de heroísmo tardio e em figuras incapazes de esboçar um protesto em tempo útil mas prontas para dar nas vistas mal soa a hora inevitável da mudança de ciclo e do ajuste de contas.
Nesse dia, o jornalismo político, sempre pronto a eleger novos heróis de turno, há-de bafejá-los com o fervor dos holofotes. Por mim, direi o que digo hoje: uma palavra de elogio aos que no PS viram, ouviram, leram - e não calaram. São poucos. Escandalosamente poucos.
Quadro: A Queda dos Anjos Rebeldes (1562), de Pieter Bruegel
Em 1979, Francisco Sá Carneiro formou listas eleitorais. Alargando o espaço político do PSD ao centro e à direita, firmando uma coligação com o CDS de Freitas do Amaral e o PPM de Ribeiro Telles. Mas era também necessário alargar a influência eleitoral do seu partido à esquerda. O que fazer? Num daqueles lances tácticos que traçam a diferença entre o político mediano e o dirigente de excepção, atraiu para a nova coligação dois homens oriundos da esquerda, que pouco antes se haviam sentado no Conselho de Ministros como representantes da mais jovem geração de talentos do Partido Socialista: António Barreto, ex-titular da pasta da Agricultura, e José Medeiros Ferreira, ex-responsável dos Negócios Estrangeiros, anunciaram o voto na AD em nome do seu Manifesto Renovador, força política de centro-esquerda então lançada, dando o seu aval - como independentes - à nova coligação.
Os treinadores de bancada, que já nessa altura abundavam no PSD (embora em muito menor número do que agora), não tardaram a criticar Sá Carneiro, um político que - bem à portuguesa - só viu os seus méritos largamente reconhecidos após a morte. Acusaram-no de demagogia, de oportunismo, de abrupta viragem à esquerda, de tentar tudo na desesperada caça ao voto. O costume, entre nós: quando alguém tenta mudar alguma coisa, seja o que for, no quadro político português é logo cravejado de críticas pela corporação do comentário político, eternamente avessa a novos nomes e novas siglas, sempre passíveis de baralhar os quadros mentais instalados.
Sá Carneiro ganhou essa eleição de 1979. E com isso fez história: era a primeira vez que a direita chegava ao poder cumprindo as regras do jogo eleitoral. Barreto e Medeiros Ferreira contribuíram para essa maioria, também eles criticadíssimos pelos comentadores de serviço, que já na altura não entendiam nada. Alguns são os mesmos que continuam a não entender nada agora.
A derrota histórica do PSOE, de Rodríguez Zapatero, nas eleições autonómicas e municipais de ontem confirmou que não é possível iludir durante demasiado tempo o eleitorado. Este monumental castigo nas urnas que antecipa o fracasso dos socialistas nas próximas legislativas é um merecido castigo para a incompetência governativa do homem do eterno sorriso, que prometeu uma Espanha mais justa e afinal - sorrindo sempre - deixa uma Espanha mais pobre, mais ineficiente, com maiores assimetrias, com menos prestígio internacional. Uma Espanha à beira da penúria, com cinco milhões de desempregados (marca acima do dobro da média europeia, marca nunca vista num país que se orgulhava de figurar entre as dez potências industriais do planeta) e onde 45% dos jovens não conseguem encontrar trabalho.
Zapatero, com o seu afã "modernizador", viveu obcecado com medidas de "engenharia social" enquanto deixava a economia naufragar, surdo a todos os avisos. Como se vogasse numa realidade paralela, à semelhança de certas personagens dos filmes de Pedro Almodóvar. Teve o que mereceu na jornada eleitoral de ontem. Os socialistas foram derrotados nas 13 comunidades onde se votou (resta-lhes, ao nível de governos autonómicos, a Andaluzia, um feudo de sempre que ainda só aguentaram por ontem não ter ido a jogo) e nas 20 maiores cidades de Espanha. Perderam bastiões históricos como Barcelona (para os nacionalistas catalães), Sevilha, Cáceres e Las Palmas (para o Partido Popular). E a Corunha (também para o PP), San Sebastián (para os independentistas bascos). Sofreram a maior derrota de que há memória em Madrid (25% atrás do PP). Perderam em Valência, Múrcia, Mérida, Saragoça, Valladolid, Vitória, Logroño, Santander, Oviedo, Vigo, Santiago de Compostela, Pontevedra, Málaga, Granada, Burgos, Bilbau, Pamplona e Palma de Maiorca. Deixaram fugir autonomias onde governavam há décadas, como Castela-La Mancha, Aragão, Astúrias e Baleares. E poderão aguentar-se apenas na Extremadura, onde ficaram em segundo, graças ao apoio dos comunistas, por um punhado de votos.
Como lhe chamou o El País, foi um "tsunami" eleitoral, que funcionou fundamentalmente como um plebiscito ao ainda chefe do Governo. Os espanhóis - de todas as Espanhas - mostraram bem o que pensam: Zapatero é parte do problema, não da solução. E de nada lhe valeu a mais recente expressão de oportunismo político, tentando colar-se à manifestação dos jovens "indignados" de Madrid, dizendo que se tivesse 25 anos se juntaria a eles. Raras vezes me lembro de uma declaração tão demagógica da boca de um político. Como se os jovens que hoje se rebelam contra a classe política espanhola não estivessem assim, em grande parte, devido à incompetência do Executivo Zapatero.
Nesta hora de mudança, o exemplo espanhol merece registo. Devemos confiar sempre no veredicto dos eleitores.
Se este frente-a-frente era "o debate decisivo" das legislativas de 2011, como vinha apregoando a RTP, Pedro Passos Coelho tem motivos para estar satisfeito. Porque foi ele o vencedor deste confronto com José Sócrates. O primeiro-ministro mostrou-se, mais que nunca, esgotado e sem ideias neste embate - o seu primeiro de sempre - com o actual presidente do PSD. Tentou reeditar com Passos a estratégia que montou com eficácia perante Manuela Ferreira Leite no debate televisivo das anteriores legislativas. Objectivo: procurar conduzir a discussão para as propostas sociais-democratas, evitando assim o escrutínio ao seu Governo.
Ferreira Leite, em 2009, caiu na esparrela. Passos - que deve ter visto várias vezes o vídeo desse debate - não se deixou enredar na armadilha do secretário-geral socialista. E disse-lhe algumas das frases mais fortes que Sócrates tem escutado desde sempre. "Este foi um governo incapaz e um governo incompetente", acentuou. Sem se esquecer, desta vez, de aludir aos 700 mil desempregados: "Temos o desemprego mais elevado de sempre em Portugal."
Sócrates ainda ensaiou o habitual número de 'animal feroz'. Mas desta vez sem sucesso. Embrulhou-se, uma vez mais, na questão da taxa social única. Aludiu à crise internacional como tentativa de justificar o estado em que o País se encontra, esquecendo que até a economia grega já está a crescer e Portugal deverá ser o único país do mundo em recessão no próximo ano. E regressou a um tema já morto e enterrado, procurando atirar para cima do PSD a responsabilidade do chumbo do PEC 4. Aqui, Passos interrompeu-o sem meias palavras: "Sabe porque é que o PSD não votou o PEC 4? Porque não servia. E porque o senhor falhou o PEC1 e o 2 e o 3."
A única fase do debate em que o líder socialista conseguiu remeter o social-democrata à defesa foi na questão das posições do PSD sobre a saúde, acusando o partido laranja de pretender acabar com o Serviço Nacional de Saúde "tendencialmente gratuito", como indica a Constituição da República. Mas Passos acabou por reagir com uma contundência de que muitos não o imaginavam capaz antes deste debate: "Porque é que não tem a coragem de discutir a sua responsabilidade à frente do governo de Portugal num país que chegou praticamente à bancarrota?"
O líder socialista, a partir daí, perdeu margem de manobra: talvez se lembrasse daquele tempo, não muito recuado, em que elogiava Passos Coelho como um bom parceiro para "dançar o tango". A certa altura já não conseguia melhores argumentos do que acusar o seu adversário de "dizer mal do País" e de "utilizar expressões como bancarrota" no seu discurso político. "O senhor diz mal de tudo", concluiu.
Era um Sócrates já nitidamente fatigado que se repetia no ecrã - facto que se tornava ainda mais evidente quando era filmado em grande plano. Sem ideias, sem recursos estilísticos, sem o dom da iniciativa, sem capacidade para surpreender. Como, de algum modo, já tivesse interiorizado a derrota eleitoral. A televisão, nesta matéria, pode ser um instrumento cruel. Sócrates, que tantas vezes beneficiou dela, hoje foi sua vítima. O debate terá mesmo sido decisivo. A RTP estava cheia de razão.
Passos - «José Sócrates é o primeiro-ministro que mais maldades e malfeitorias fez ao estado social. Foi o primeiro primeiro-ministro que cortou salários na função pública, que mais reduziu as prestações sociais, que elevou os custos do acesso à saúde, diminuindo as comparticipações de medicamentos, que eliminou milhares de abonos de família...»
Sócrates - «As suas propostas rompem com o consenso social na Europa.»
Passos - «Portugal é o único país da Europa que enfrenta uma recessão séria.»
Sócrates - «O senhor é responsável por ter criado uma crise política no nosso país. Essa crise política foi uma completa irresponsabilidade.»
Passos - «O senhor está agarrado ao lugar de primeiro-ministro.»
Sócrates - «O senhor quer combater o desemprego permitindo mais despedimentos.»
Passos - «O engenheiro Sócrates não gosta de ouvir falar dos resultados do seu governo nem dos 700 mil desempregados.»
Sócrates - «Por amor de Deus! O senhor diz sempre mal de tudo, diz mal do País, utiliza expressões como bancarrota...»
Francisco Louçã e Paulo Portas protagonizaram esta noite, na SIC, o mais equilibrado dos debates televisivos desta campanha. Foi um debate em que ficaram evidentes as clivagens ideológicas mas sem crispações pessoais. O presidente do CDS-PP e o coordenador do Bloco de Esquerda, ambos com longa experiência em televisão, souberam dirigir-se aos seus eleitorados específicos - jovens, desempregados e pensionistas sociais, no caso de Louçã; idosos, agricultores e portugueses da classe média-baixa, no caso de Portas. Louçã foi hábil ao associar por duas vezes o seu antagonista ao primeiro-ministro. "O seu programa é hoje o do engenheiro Sócrates", acusou o bloquista, lembrando que Portas apoiou o memorando assinado entre o Governo e o triunvirato composto por membros da Comissão Europeia, FMI e Banco Central Europeu. "O responsável pela situação a que Portugal chegou chama-se José Sócrates", demarcou-se Portas, acentuando que aprovou o memorando por absoluta falta de alternativa: "Uma declaração de insolvência do Estado português significava que Portugal era posto fora do euro e que o dinheiro das pessoas ficava a valer metade."
Portas aproveitou o início do frente-a-frente para detalhar algumas das medidas que propõe aos eleitores. Nomeadamente a concessão de um crédito fiscal às empresas que contratem novos trabalhadores neste tempo de recessão e a obrigação de as universidades avisarem os alunos para os índices de emprego dos seus cursos. Louçã também foi capaz de descer ao concreto, advogando a "criação de emprego com o impulso do Estado" na ferrovia de proximidade, em novas redes de lares de terceira idade e na reabilitação urbana. Trocaram argumentos fortes em questões como o emprego, o rendimento mínimo e a renegociação da dívida externa portuguesa. Portas aproveitou para criticar Louçã por ter recusado uma audiência com os membros do triunvirato que se deslocaram a Lisboa: "As suas ideias, deixou-as nas mãos de José Sócrates. Porque teve medo de perder votos para o Partido Comunista." Louçã deu-lhe o troco, acusando-o de "conseguir votos" à custa da diabolização dos beneficiários do rendimento mínimo, "degradando a cultura da solidariedade". E, tal como fizera no debate com Paulo Portas, voltou a mencionar o ex-ministro democrata-cristão Bagão Félix entre os que defendem a renegociação da dívida. Sem esquecer outras personalidades distantes da sua área ideológica que já exprimiram a mesma tese, como Pedro Ferraz da Costa e "o seu antigo primeiro-ministro, Santana Lopes". Palavras ditas olhando Portas com um sorriso irónico.
O presidente do CDS, mais contido do que é habitual, não hesitou em mencionar áreas de convergência com o Bloco: "Ambos votámos a favor da prescrição da unidose", acentuou. Também ele defende a "Caixa Geral de Depósitos pública", estando nesta matéria mais próximo de Louçã do que do PSD. Não deixou, aliás, de marcar distâncias em relação a Passos Coelho num cenário de uma coligação pós-eleitoral PSD-CDS. Passos só a aceita se os sociais-democratas forem os mais votados, Portas defende-a mesmo que o PS fique em primeiro nas urnas mas os dois partidos mais à direita consigam formar maioria aritmética no Parlamento.
"Os indecisos têm que votar. Eles farão a força da democracia", concluiu Louçã. Portas pareceu de acordo. Não restavam dúvidas: este debate serviu aos dois.
Louçã - «A criação de emprego tem que puxar pela economia no seu todo.»
Portas - «O primeiro-ministro que ainda nos governa tinha prometido criar 150 mil postos de trabalho.»
Louçã - «Todas as medidas que afundam a economia criam desemprego.»
Portas - «O senhor não pode enganar-se com quem está aqui. Não está aqui ninguém que congelou pensões.»
Louçã - «Paulo Portas é o único português, junto com o engenheiro Sócrates, que acha razoável pagar 30 milhões em juros.»
Portas - «O doutor Francisco Louçã não foi capaz de falar nem com o FMI, nem com o BCE, nem com a UE. Quando o meu país está à beira da insolvência, eu não fico quieto.»
Louçã - «O doutor Paulo Portas tem muito pouco respeito pelos adversários. Não me acuse de ficar quieto.»
Portas - «A renegociação da dívida não é solução.»
Foi um bom debate: Francisco Louçã e Pedro Passos Coelho olharam-se de frente, ouviram com atenção o que o outro dizia sem atropelarem discursos, evitaram o recurso a frases feitas. Respeitaram-se mutuamente, o que tem muito a ver com as expectativas geradas pelas últimas sondagens aos partidos que ambos lideram. A Passos Coelho interessava dar algum palco a Louçã, que segundo os mais recentes estudos de opinião tem visto fugir votos para o PS. O coordenador do BE tinha uma preocupação simétrica: interessa-lhe progredir eleitoralmente à custa dos socialistas, o que o inibe de transformar o PSD em adversário principal.
Neste aspecto, a estratégia de ambos foi bem sucedida. Louçã evitou acantonar-se na esquerda mais radical: um socialista da ala esquerda poderia subscrever sem reserva tudo quanto disse neste debate travado na TVI, sob moderação de Judite Sousa. Por seu turno, o presidente do PSD - apostado em pescar votos à sua esquerda - mostrou-se, algo surpreendentemente, de acordo com os bloquistas em pelo menos cinco matérias: na possibilidade de renegociação da taxa de juro do empréstimo da Comissão Europeia a Portugal, na necessidade de evitar que os reformados sejam penalizados por este acordo, nas críticas à banca por ter concedido demasiado crédito à habitação na última década, nas vantagens de haver um orçamento de Estado de base zero e na urgência de pôr o País a crescer.
Louçã esteve, no entanto, mais acutilante e objectivo do que o seu interlocutor. Passos Coelho continua a revelar alguns defeitos centrais nestes debates: gasta demasiadas palavras para dizer coisas que deviam ser ditas de forma mais simples (hoje lá voltou ao jargão tecnocrático, falando em spread e benchmark) e falta conteúdo social ao seu discurso. Diminuir a dívida do Estado é um objectivo fundamental, mas o voto dos eleitores joga-se em questões relacionadas com o quotidiano directo e concreto. Num país com 700 mil desempregados, a omissão deste tema no discurso do líder do principal partido da oposição é quase inexplicável. Tal como é o combate que hoje decidiu fazer ao programa Novas Oportunidades: ao abrir tantas frentes de ataque, acaba por não se concentrar no essencial.
O coordenador do Bloco de Esquerda marcou pontos ao confrontar Passos com o caso da Madeira, onde o PSD governa desde sempre com maioria absoluta: o Jornal da Madeira, "uma folha de propaganda do Governo" de Alberto João Jardim, "tem um défice acumulado de 50 milhões de euros". Por outro lado, acentuou, o Governo Regional "atribuiu a uma empresa do secretário-geral do PSD Madeira o aterro da baía do Funchal, obra de 40 milhões de euros" . As questões da Madeira perturbam sempre os líderes nacionais do partido laranja. Passos virou a agulha de imediato: "José Sócrates, em seis anos, duplicou o passivo das despesas públicas, que representa praticamente dois terços do dinheiro que pedimos emprestado ao exterior."
Louçã também marcou pontos ao invocar, em socorro do combate ao memorando assinado com a Comissão Europeia e o FMI, a opinião de Bagão Félix, um homem situado num quadrante político muito diferente do Bloco. O seu ponto fraco, tal como ocorreu em anteriores debates, relaciona-se com a dificuldade em explicar com precisão como renegociaria a dívida pública portuguesa.
Do lado de Passos, os melhores momentos ocorreram na primeira metade deste frente-a-frente, quando utilizou palavras duras para caracterizar o desempenho do Executivo socialista: "O Governo conduziu o País a uma penúria absoluta." Palavras que muitos portugueses certamente subscrevem. Resta-lhe recorrer com mais frequência a esta linguagem sem rodeios para concretizar o objectivo que enunciou: "O PSD tem a obrigação de ganhar estas eleições."
José Sócrates, como é costume, levava a estratégia bem montada. Pretendeu fazer do frente-a-frente desta noite na SIC, com Jerónimo de Sousa, uma espécie de ensaio geral para o decisivo debate de sexta-feira com o presidente do PSD. E atacou o secretário-geral comunista como fará certamente com Pedro Passos Coelho: utilizando o programa eleitoral do seu antagonista como arma de arremesso. Isto permitiu-lhe, durante alguns minutos, marcar o tom e o ritmo da contenda. "Já debati aqui com dois líderes que não tinham programa. Hoje estou a debater com um líder que tem o mesmo programa de há dois anos", ironizou o líder do PS, reduzindo as propostas comunistas a três grandes ideias-força: a reestruturação da dívida ("igualzinha à do Bloco de Esquerda"), sair do euro ("isto nem o Bloco de Esquerda!") e um amplo programa de nacionalizações. Rematando em bom estilo: "Onde iria buscar dinheiro para comprar estas empresas [a nacionalizar]? São mais de 50 mil milhões de euros."
Esta tirada do líder socialista teve o condão de acicatar Jerónimo. Que não tardou a dar-lhe o troco: "José Sócrates, quando ouve falar em nacionalizações, fica com urticária. Mas foi lesto a nacionalizar o BPN, ficando os milhões de milhões de custos para o povo português." Isto assinalou uma certa viragem no debate - e raras vezes, a partir daqui, voltámos a ver Sócrates na ofensiva. Pelo contrário, o secretário-geral do PCP conseguiu ultrapassar Paulo Portas e Francisco Louçã na capacidade de forçar o líder do PS a justificar o seu controverso currículo governativo. Lembrou o abortado cheque-bebé de 200 euros acenado por Sócrates na campanha legislativa de 2009, o "corte de mais de 600 mil abonos de família", o congelamento de salários e de pensões, e"uma política fiscal que carrega sempre contra os mesmos". Curiosamente, ao invocar a obra feita, o secretário-geral socialista limitou-se a mencionar medidas assumidas entre 2005 e 2009 - do complemento solidário para idosos à reforma da segurança social.
O debate foi vivo e pelo menos num sentido também foi esclarecedor: a unidade da esquerda portuguesa continua a ser um sonho adiado. O PCP persiste em manter as portas fechadas a qualquer entendimento com os socialistas. "Os três partidos - PS, PSD e CDS - têm um programa comum", justificou Jerónimo. Sócrates, se vencer a 5 de Junho, tem um problema sério pela frente: nenhuma força política, à esquerda e à direita, parece disposta a coligar-se com ele. "Deve haver um governo maioritário", sublinhou o líder socialista, que em resposta à moderadora, Clara de Sousa, deixou um recado ao Presidente da República lembrando uma enraizada "tradição" na política portuguesa: "Quem ganha as eleições é que vai para o Governo." Mas a sensação que transmitiu neste debate é que para ele isso será um quebra-cabeças. O que sucede, em boa verdade, por culpa própria: em nenhum momento do frente-a-frente Sócrates fez um esforço mínimo para cativar um voto comunista. Pelo contrário, chegou a revelar - por palavras e esgares - alguma arrogância, nomeadamente quando acusou Jerónimo de ser "incapaz de compreender" a lógica do sistema fiscal português.
São pormenores. Mas que ajudam a perceber por que motivo José Sócrates é hoje a figura mais solitária da cena política nacional.
Jerónimo - «O candidato José Sócrates tem uma forma esquisita de defender o estado social.»
Sócrates - «O PCP cometeu um erro de análise ao aliar-se à direita para provocar uma crise política.»
Jerónimo - «O ónus está sempre nas costas de quem trabalha.»
Sócrates - «Reestruturar a dívida significa calote. Pagar-se-ia com pobreza, desemprego, miséria e falências.»
Jerónimo - «Ainda havemos de assistir a José Sócrates a defender a reestruturação da dívida.»
Clara de Sousa - «Porque é que este memorando [com a Comissão Europeia e o FMI] não foi traduzido oficialmente em versão portuguesa para que os portugueses o percebam?»
José Sócrates - «Estou convencido que essa tradução existe. (...) Se não há, devia haver.»