«Tenho idade suficiente para me lembrar como eram o Portugal de Salazar e a Espanha de Franco há 40 anos. Não há comparação possível com os países que são agora.»
«Nos EUA os jovens, quando não encontram emprego, criam o seu próprio emprego. Mas temos uma rede de segurança social menos forte do que a europeia. Na Europa, pelo contrário, existe uma rede de segurança tão forte que por vezes estrangula a inovação.»
«O capitalismo é o sistema mais extraordinário inventado pelos seres humanos para maximizar a produtividade. Até os chineses estão de acordo, pois têm um capitalismo de Estado. O maior perigo do capitalismo são os capitalistas.»
«O programa de austeridade em Portugal será doloroso mas é necessário.»
«Um dos maiores problemas dos países periféricos [da União Europeia] é a falta de reformas estruturais, que estão a decorrer de forma muito lenta.»
«A zona euro é uma experiência importante, a nível mundial. Mas não podemos enfiar a cabeça na areia: é fundamental haver crescimento económico. O essencial é saber se conseguiremos restaurar o crescimento em Portugal, na Grécia e na Irlanda. Caso contrário a situação na Europa tornar-se-á insustentável.»
«Uma das grandes armadilhas dos novos processos democráticos [no mundo árabe] é a corrupção. Não há nada que mine mais a sua legitimidade.»
«Portugal, em 1974, recebeu muito apoio dos sociais-democratas e dos democratas-cristãos europeus, o que se revelou decisivo para o sucesso da transição democrática.»
«Grande parte dos jovens licenciados que saem de Harvard vão para Wall Street. Não vão para a medicina, para a advocacia, para a indústria transformadora... Há má distribuição dos recursos humanos nos EUA.»
«O Egipto é hoje uma panela de pressão. Como resultado da repressão, a sociedade está muito fragmentada. Há muitas tendências a apontar para muitos caminhos. A coesão social é inexistente.»
«As pessoas na Tunísia apressaram-se a adoptar o lema de Obama: 'Yes, we can'. Depois os egípcios pensaram: se os tunisinos conseguem, nós também vão conseguir.»
«Personalidades como Henry Kissinger e George Shultz, que estiveram no olho do furacão durante a Guerra Fria, defendem hoje um mundo sem armas nucleares. Porque corremos o risco da autodestruição.»
A Líbia constitui "o pior pesadelo" dos dias que correm. A opinião, sem rodeios de qualquer espécie, foi ontem expressa por Mohamed ElBaradei nas Conferências do Estoril, que encerraram esta segunda edição com chave de ouro ao darem o palco ao ex-director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica, Prémio Nobel da Paz de 2005. Durante cerca de hora e meia, que pareceu pouco a quem assistia no Centro de Congressos do Estoril, o candidato à próxima eleição presidencial no Egipto defendeu uma intervenção mais activa da comunidade internacional para impedir a continuação dos massacres da população civil às ordens dos esbirros de Muammar Kadhafi, o ditador que permanece no poder desde Setembro de 1969, cego e surdo às aspirações de liberdade dos líbios.
Voz autorizada na defesa dos direitos humanos, participante activo na revolução de Fevereiro que levou à queda do regime despótico de Hosni Mubarak no Cairo, ElBaradei foi claro: "Não podemos aceitar que os ditadores massacrem os seus povos. Gostaria de ver uma intervenção internacional mais robusta, mais activa na Líbia." Na sua perspectiva, as relações internacionais contemporâneas são indissociáveis do respeito permanente da dignidade humana. "Temos de agir como mebros da mesma família global. A Líbia é um grande teste. Temos de espalhar esta mensagem: não continuaremos quedos e mudos, não assistiremos impávidos ao massacre de civis."
'A natureza das revoluções no Magrebe e no Médio Oriente' foi o tema abordado nesta excelente conferência, acompanhada com atenção por uma vasta plateia, em que se integravam muitos jovens. Baradei afirmou que o mundo "pode e deve ajudar" as populações do mundo islâmico que lutam pela liberdade - contribuindo para o "desenvolvimento económico, a coesão social e a promoção dos direitos humanos" em países como o Egipto, onde os militares estão com "demasiada pressa" em devolver o poder aos civis. Na sua perspectiva, a elaboração de uma nova Constituição devia ser o primeiro passo para fundar um regime democrático no Cairo - de preferência com um artigo basilar inspirado na primeira norma da lei fundamental da Alemanha: "A dignidade humana é inviolável."
Esta foi a grande mensagem que deixou no Estoril: "Não podemos pôr os interesses antes dos valores." Uma mensagem que contraria os cultores da realpolitik, sempre prontos a estabelecer relações cordiais com os piores tiranos contemporâneos. "Os EUA e a Europa apoiavam as ditaduras [na Tunísia e no Egipto] recorrendo ao argumento da estabilidade. No segundo dia das revoltas populares, Hillary Clinton chegou a dizer que o governo de Mubarak era estável. Como pode um regime que governa durante 30 anos com lei marcial ser um modelo de estabilidade? Nunca há estabilidade quando os governos não são livremente eleitos pelo povo."
Estive entre a assistência que o aplaudiu com entusiasmo ao fim da tarde de ontem. Gosto de ouvir um Nobel da Paz falar assim.
Um dos problemas deste país é gastarmos muito mais tempo a ler opiniões de gente burra do que de gente inteligente e bem informada. Ainda agora, a propósito das revoltas no mundo árabe, se percebe isso: damos um pontapé numa pedra na rua e saem de lá dez recentíssimos "egiptólogos" a debitar inanidades sobre a incompatibilidade radical entre a democracia e o mundo árabe. Alguns são os mesmos que há 30 anos garantiam ser impossível haver estados de direito na América Latina e há 20 anos juravam que o sistema democrático jamais vingaria na Europa de Leste.
Os mesmos, sempre os mesmos. Clamam desde o século passado contra o atraso endémico do País enquanto interpretam a evolução do mundo com a argúcia de um camião TIR em marcha-atrás.
No início, muitos autores portugueses, sobretudo de direita, não compreenderam a importância do que se estava a passar nos países árabes. As revoluções na Tunísia e, logo a seguir no Egipto, anunciam alterações na ordem mundial, com o fim de regimes autoritários e uma nova vaga de democratizações no planeta. 2011 pode ser um ano importantíssimo na história do século. Mas os primeiros textos de certos autores eram tentativas de negar o óbvio, recheados de citações sombrias e terríveis papões que viriam engolir o Ocidente.
Em Portugal, existe dificuldade em debater temas e aceitar críticas. Isso notou-se na primeira fase da discussão. Para alguns, os acontecimentos no Médio Oriente e Norte de África eram uma catástrofe, tendo necessariamente de dar origem a regimes ainda piores do que os existentes. O corolário deste determinismo histórico era de que seria melhor tudo ter ficado como estava. E as imagens do que parecia ser uma festa pacífica no Cairo ou Tunes eram tidas como interpretações de repórteres deslumbrados.
Agora, a tese é impossível de defender no caso Líbio (não se percebe o que possa ser pior do que o regime de Kadhafi). O ditador líbio é um genocida que não hesita em disparar contra o próprio povo. Kadhafi não medirá as suas acções e fará muitas vítimas antes de uma queda que julgo ser inevitável.
Como dizia o outro, o mundo está perigoso. Vejam só: até o inamovível coronel Kadhafi, que permanece apenas há 42 anos como senhor absoluto da Líbia, anda a ser contestado nas ruas, respondendo aos protestos da forma expedita a que nos habituou noutras ocasiões: a tiro. Balanço provisório: 24 mortos. Só o embaixador português em Trípoli não reparou em nada.
Tanta agitação contra as ditaduras no mundo árabe deixa alguns colunistas nervosos: Maria João Avillez, na Sábado, acentua que não se deixa comover por revoluções, "francesas ou de flores", e não consegue deixar de cismar nos Irmãos Muçulmanos: "Acho-os terríveis e não encontro nenhuma boa razão, de peso e com substância, para pensar o contrário." Na mesma revista, o sociólogo Alberto Gonçalves vai mais longe: invoca o "Terror revolucionário francês" e - pasme-se - até o nazismo e o Holocausto a (des)propósito da queda de Mubarak. "É suficiente notar a forte hipótese de o Egipto livre e democrático dos sonhos se tornar, na prática, um Egipto institucionalmente islâmico", proclama o titular da página de fecho da Sábado, dando como provado este facto extraordinário: "O povo que reivindica nas ruas o direito à felicidade parece, em larga medida e a acreditar nos estudos de opinião, o mesmo povo que reivindica o direito à excisão feminina (que Mubarak baniu em 2007) ou à lapidação das adúlteras (que Mubarak proibia)."
Extraordinário ditador, que poupou o povo egípcio a tais terrores. Extraordinário Mubarak, tão amigo do Ocidente em geral e tão digno da admiração de Alberto Gonçalves em particular. E extraordinários "estudos de opinião" - não especificados pelo crédulo sociólogo - que "parecem" conjugar liberdade e lapidação no Egipto.
Não conheço nenhum outro pensador mundial capaz de associar um movimento pró-democracia à excisão feminina. Espero que o sociólogo da Sábado tenha registado a patente.
Martin Wolfafirma que um dos efeitos da recente crise económica e financeira mundial foi o de acelerar o futuro. Três realidades mundiais foram adiantadas no tempo uns bons dez anos pelo efeito da crise. Em primeiro lugar, o aperto fiscal, que já se previa através da observação das tendências demográficas nos países mais desenvolvidos, teve de ser antecipado para o tempo presente. A política de agora e dos próximos anos será dominada pelas finanças públicas, o que é um mau sinal. Em segundo lugar, o aumento do peso da China, Índia, Brasil e outras economias emergentes no produto mundial era já esperado. Mas ninguém previa que a sua importância aumentasse tão rapidamente. Isto foi o resultado da contracção das economias industrializadas mais velhas ao passo que as novas economias não pararam de crescer. Finalmente, uma tendência que ganhou uma aceleração ainda mais inesperada (ingenuidade ocidental?) foi a deterioração da imagem do "ocidente" e dos Estados Unidos da América um pouco por todo o mundo. Os falhanços militares e financeiros do ocidente deterioraram ainda mais a imagem que a Ásia tinha do "ocidente".
Ed Husain, sobre a revolução no Egipto e a Irmandade Islâmica, defende que é possível reorientar a Irmandade no sentido democrático. A tese é a de que não é forçoso que a Irmandade, no caso de conquistar o poder pela via democrática, perverta a democracia e imponha um regime fechado e intolerante. Pelo contrário, é possível seduzir a Irmandade no sentido de aceitar a laicidade do Estado egípcio e a separação entre política e religião. Por outras palavras, a opção não se reduz ou a impedir a ascensão da Irmandade através da manutenção do status quo autocrático ou a permitir a democracia, aceitar uma possível tomada do poder por parte da Irmandade e esperar que esta a pouco e pouco delapide a democracia. Uma terceira possibilidade é a Irmandade conquistar o poder mas abster-se de seguir a via fundamentalista. Tudo depende do discurso e atitude de alguns dos líderes da Irmandade, nomeadamente em relação ao pluralismo, direitos humanos e, naturalmente, o respeito por Israel.
Nouriel Roubini lembra-nos que três das últimas cinco crises económicas globais foram consequência de choques geopolíticos no Médio Oriente. Uma das preocupações associadas às alterações políticas na Tunísia, Egipto, Jordânia, Síria, ... é que ocorra um choque na oferta de petróleo. Esse choque pode inflectir a actual tendência de crescimento económico mundial, em que uma boa parte das economias recém saídas da crise ainda está numa posição financeira e macroeconómica muito frágil.
Defendi neste blogue que eleições democráticas no Egipto (e já agora, na Tunísia) darão com toda a probabilidade a vitória aos islamitas, no caso egípcio a Irmandade Muçulmana e no tunisino o Partido do Renascimento (Ennadha ou al-Nahda).
Nuno Gouveia escreve este artigo sobre os islamitas egípcios e tento entrar em controvérsia por não ser possível comentar o seu post. E o autor cita Robert Kaplan, aqui, como estando a refutar um cenário de vitória islâmica.
Se bem interpretei o texto, Robert Kaplan tenta dizer que não é inevitável um cenário iraniano, o que é diferente de não admitir a vitória islâmica. O autor faz uma comparação com a Europa de Leste, na linha do que também já escrevi, de que a actual crise é comparável à queda do Muro de Berlim, e admite vários cenários, desde transição fácil a guerra civil.
Nesta discussão, há elementos incontroversos: o poder eleitoral destes movimentos é importante. De facto, a irmandade não tem líder carismático, mas em vários países do leste europeu a oposição não tinha líderes carismáticos conhecidos no exterior e isso não impediu a transição. Na Tunísia existe um líder carismático, Rachid Ghannouchi, que compara o seu partido ao turco Justiça e Desenvolvimento, AK, que é uma formação democrática.
No Egipto, em 2005, os candidatos independentes ligados à irmandade elegeram 88 deputados, apesar da chapelada governamental. Na Tunísia, em 1989, com todas as contrariedades do mundo, diz-se que os candidatos independentes ligados ao Ennadha podem ter ultrapassado os 10%. Vinte anos depois, correu muita tinta e estes movimentos ganharam popularidade, não a perderam.
Se houver eleições livres, no mínimo os partidos islâmicos terão boas votações. O que não quer dizer que vão imitar o Irão, pois a democracia representa para eles uma vantagem. Parece-me que existe uma confusão em algumas das abordagens que tenho lido: a maioria dos autores acha que a vitória islamita implica o fim da democracia. Mas existe uma leitura alternativa, de que a democracia dará provavelmente lugar à vitória islamita, iniciando uma transição para regimes democráticos onde os islâmicos serão o poder e os seculares estarão na oposição.
Ou seja, o cenário iraniano não é inevitável, mesmo que estes partidos radicais triunfem.
Nota: a minha insistência nestes pontos deve-se ao facto de ter feito reportagem na Tunísia e no Egipto. Falei com pessoas do regime e tive a sensação da rua. Em ambos os países tive a impressão nítida de que os islamitas na clandestinidade ou ilegalizados eram muito fortes.
Esta revolução no Egipto tem certa organização, o que implica a presença decisiva da irmandade. É de louvar a forma como eles protegeram o Museu do Cairo, onde estão tantas preciosidades do velho Egipto.
Tenho lido comentários em blogues sobre a revolução no Egipto, por exemplo este, de Rodrigo Moita de Deus, ou este, de Filipe Nunes Vicente, mas julgo que não existe alternativa à democracia e concordo com o que escreve Henrique Raposo, aqui.
A Irmandade Muçulmana será provavelmente a vencedora de eleições livres no Egipto. Esse era o argumento do regime de Mubarak sempre que o ocidente levantava a questão da liberdade no país: "Pode arranjar-se uma liberalização, mas vencem os barbudos", diziam.
Considerando a influência do Egipto no Médio Oriente (que a Tunísia, do Magrebe, não tem), o actual movimento nas ruas pode produzir o mesmo impacto geopolítico que teve a queda do Muro de Berlim.
Os irmãos são anti-ocidentais, não deverão permitir a liberdade religiosa (neste ponto há dúvidas) e serão um problema sério para Israel e, de outra maneira, um problema para outros regimes autoritários no Médio Oriente. Já o escrevi neste blogue: basta circular num bairro popular do Cairo e ver o número de mulheres que usam abaya ou niqab (vestes que tapam totalmente o corpo, à excepção dos olhos). Os abusos da polícia secreta não recomendam ali as barbas compridas, pelo que pode ser enganadora a sensação de que talvez não haja tantos islamitas assim. Mas há e têm enorme influência nas camadas mais pobres da população.
No entanto, dito isto, uma acção ocidental que impedisse a democracia era um enorme crime. Só serviria para radicalizar a irmandade e confirmar o argumento da hipocrisia do ocidente. Segundo os islamitas, europeus e americanos estão sempre a falar em democracia, mas quando o resultado não lhes interessa, opõem-se a ela.
O facto é que a democracia foi possível na Turquia e o regime iraniano podia hoje não ser teocrático, se os EUA tivessem impedido o xá de radicalizar os seus fundamentalistas ou impedido Saddam Hussein de atacar o Irão.
O exemplo turco demonstra que os islâmicos moderados podem conviver com republicanos nacionalistas e até com liberais pró-ocidentalização. É um convívio difícil (um programa na TV causou esta semana feroz polémica entre os ultra-conservadores turcos), mas a ditadura militar não constitui a única solução.
O choque de civilizações é um beco sem saída, mas sobretudo para estes países, que não têm força económica ou tecnológica para triunfar num confronto com o ocidente. Em política, muitas vezes a razão não vence as discussões, mas no caso da revolução no Egipto há islamitas que reconhecem as vantagens do jogo democrático, de eleições limpas e de um mínimo de tolerância que lhes garanta a manutenção no poder. É ingenuidade acreditar nisto? Talvez seja. O conservadorismo fanático tem uma cegueira militante. Mas não vejo como é que se trava este movimento democrático.
E chegamos a uma questão verdadeiramente interessante: é possível a democracia no Médio Oriente e Magrebe? O Egipto é o país crucial neste processo, porque é também a referência de todos os países da região.
Um crescimento económico insuficiente para criar os empregos necessários, a ausência de liberdade e o Islão político juntaram-se para criar uma situação explosiva, que ontem se tornou incontrolável. Se o regime autocrático cair e houver eleições livres, a Irmandade Muçulmana deverá tomar o poder. Esta organização é a responsável pela assistência social aos pobres e criou uma poderosa rede com peso político. Os laicos e os cristãos terão uma palavra a dizer, mas num contexto democrático o país será ganho pela irmandade.
O Ocidente tem aqui um problema (Israel tem um problema ao quadrado). A Irmandade Muçulmana egípcia é a inspiração de muitos movimentos radicais islâmicos, como por exemplo o Hamas, mas a própria Al-Qaida tem elementos provenientes desta organização. Existe uma ala mais moderada e facções ultra, podemos até imaginar a vitória dos moderados, mas um triunfo islâmico no Egipto terá enormes consequências no país mais importante do Médio Oriente: menos tolerância para com Israel, o apertar dos costumes, mais políticas sociais, liberdade para a imprensa fundamentalista. Os moderados tentariam provavelmente um equilíbrio à maneira turca, com autocensura nos temas mais controversos do Islão político, mas a democracia implicará necessariamente uma radicalização religiosa.
Não é fácil ter uma opinião (Nuno Gouveia já lhes chama os islamofascistas) mas penso que a liberdade é um valor mais elevado. Se os islâmicos vencerem, o Ocidente não deve transformar-se num obstáculo e não deve apoiar os autocratas. Por outro lado, os islamitas não vão facilitar na questão da liberdade religiosa.
A resolução deste dilema pode ser um dos factos cruciais do século XXI.
Os republicanos venceram as eleições intercalares americanas, conquistando a câmara baixa do Congresso, mas alguns dos seus candidatos a senadores apoiados pelo Tea Party foram derrotados, nomeadamente Sharron Angle (Nevada), Catherine O'Donnell (Delaware) e parece que Joe Miller (Alasca). Os democratas continuarão a controlar o Senado, o que dará a Barack Obama alguma protecção contra iniciativas republicanas, dispensando-o de exercer o poder de veto. E, numa leitura possível, pode dizer-se que o Tea Party terá tirado a maioria aos republicanos, ao perder três estados acessíveis, com divisões no partido e incerteza sobre a plataforma deste movimento.
Por outro lado, sondagens à boca das urnas diziam que 40% do eleitorado se revia no protesto eleitoral do Tea Party.
Julgo que do ponto de vista europeu será necessário fazer uma reflexão sobre o fenómeno. O Tea Party é basicamente um movimento de contestação a impostos, contra o Governo federal e qualquer tipo de rede social ou despesa; é anti-capitalista, isolacionista e anti-imigração. Tem franjas lunáticas, mas raízes genuinamente populares. Como escrevi mais abaixo, é populista e demagógico, e os seus ideólogos dizem barbaridades com a mesma tranquilidade com que bebem uma chávena de chá.
A política americana deverá mudar nos próximos dois anos, embora com esta vitória mitigada seja difícil perceber para onde irá o país. A América será talvez uma nação mais impaciente e dividida; menos interventiva no mundo, apesar de não se poder dar a esse luxo; mais fechada e intolerante; mais desigual. Podemos esperar dois anos de impasse e talvez até de paralisia.
O Tea Party é também um movimento baseado num novo tipo de comunicação. Os media tradicionais deixaram de controlar a sociedade e a fragmentação criou um tipo de especialista que pode transmitir as mensagens mais alucinadas a uma audiência limitada, mas com uma força que os meios tradicionais não tinham.
As milhares de organizações locais funcionam em rede e de forma descentralizada. Parece cacofonia, mas é na realidade um mecanismo inovador, barato e altamente eficaz, embora só possa ser mantido por escasso tempo e para conseguir um determinado efeito com base numa ideia simples. Neste caso, os eleitores querem que os políticos funcionem de outra maneira, querem "mudanças em Washington". E, não tarda muito, acho que vamos começar a ver estas ideias também por aqui, só que em vez de Washington os protestos vão referir Lisboa ou Bruxelas.