O que há de comum entre Robert Mugabe, Hu Jintao, Mahmoud Ahmadinejad, Raúl Castro e Kim Jong-il? São todos inimigos da liberdade de imprensa. A lista completa, agora divulgada pelos Repórteres Sem Fronteiras, inclui também organizações criminosas, como a Mafia e a ETA. Vale a pena consultá-la aqui. Uma lista com 38 nomes - menos dois do que em 2010 devido à queda dos ditadores do Egipto e da Tunísia, duas das melhores notícias do ano.
Com lugar cativo na lista figura um ditador que ainda não caiu - o sírio Bachar al-Assad, responsável por 632 mortes e pelo menos três mil detenções desde que começaram os protestos populares contra o regime de Damasco, a 15 de Março. E também o ditador líbio, Muammar Kadhafi, que persiste em bombardear Misrata, cidade-mártir, surdo aos apelos à demissão feitos até por antigos aliados como o primeiro-ministro turco Recep Erdogan, agora estupefacto por ver que o tirano líbio condena o seu próprio povo a "sangue, lágrimas e opressão".
Devia haver limites para o cinismo político e a duplicidade moral na forma como os partidos portugueses analisam os acontecimentos internacionais. Mas na perspectiva do PCP, pelos vistos, não há. Na Soeiro Pereira Gomes continua a prevalecer a regra maquiavélica: há que pôr de lado qualquer escrúpulo de consciência no apoio aberto aos tiranos de estimação. Sabendo do que a casa gasta, mesmo assim foi com espanto que li na edição do Avante desta semana a defesa despudorada da ditadura líbia em duas páginas dedicadas ao noticiário internacional. Enumerando as revoltas que se registam no mundo árabe, o jornal oficial dos comunistas portugueses assinala as «movimentações de massas» que «alastram» por todo o Magrebe e Médio Oriente, «de Marrocos a Omã, contra os regimes políticos vigentes e por melhores condições de vida».Mencionam-se estes países: Argélia, Bahrein, Marrocos, Iémen, Omã, Koweit, Arábia Saudita, Iraque e Egipto.
E a Líbia? Pois aqui é ao contrário. Títulos desta mesma edição do Avante: «Não à agressão imperialista na Líbia»; «Líbia cercada pelo imperialismo»; «Ingerência comprovada»; «Comissário demarca-se de posição sobre Líbia». O semanário do PCP vibra com as revoltas árabes em toda a parte menos no país do coronel Kadhafi, à revelia de quase toda a comunidade internacional. Garante que a oposição ao ditador líbio é instrumentalizada pela CIA, indigna-se por ver «as afirmações de Kadhafi continuamente deturpadas» nos órgãos de informação ocidentais e alerta na primeira página: «A NATO procedeu a exercícios militares no Mediterrâneo».
Ponho de parte esta prosa repugnante, que por algum resquício de pudor surge sem assinatura no jornal do PCP, e abro a edição internacional do Independent. A manchete, assinada por Kim Sengupta, enviado especial do jornal britânico a Ras Lanuf, submetida a raides da aviação de Kadhafi, diz quase tudo: «Why won't the world help us?'». E releio a análise de Lluis Bassets publicada quarta-feira no El País, significativamente intitulada «Contra Kadhafi, guerra justa». Destaco isto:
Poderia recomendar este texto excepcional ao jornal dos comunistas portugueses, assumidamente pró-líbio. Mas não vale a pena: vigora ali a mentalidade da Guerra Fria e a veneração ilimitada aos ditadores de esquerda. Cometa Kadhafi as atrocidades que cometer, será sempre ali enaltecido. Que outra coisa seria de esperar de um partido e de um jornal capazes de elogiar o carcereiro da Coreia do Norte, Kim Jong-il?
O "erro" de Kadhafi, na perspectiva do PCP, não foi ter tiranizado um povo inteiro durante mais de 40 anos, suprimindo partidos políticos, liberdade de imprensa e liberdade sindical. O "erro" de Kadhafi, para os comunistas portugueses, não foi ter mandado prender, torturar e até assassinar quem se atreveu a contestá-lo, como sucedeu ao escritor Daif Gazal. O "erro" de Kadhafi, vem agora dizer o dirigente comunista Ângelo Alves, nas páginas do oficiosíssimo Avante!, ocorreu apenas nos anos mais recentes, quando decidiu «abraçar a "guerra ao terrorismo"». Isto num artigo em que a palavra "ditador" surge cuidadosamente colocada entre aspas, não vá algum militante lembrar-se ainda dos tempos em que o PCP enaltecia Kadhafi como uma espécie de Che Guevara do Magrebe. Um artigo em que não surge uma só palavra em defesa dos líbios que têm tombado no combate contra o coronel que os oprime desde 1969 - era Richard Nixon presidente dos Estados Unidos e Marcello Caetano substituíra poucos meses antes Salazar em Portugal. O "crime", garante este membro da Comissão Política do PCP, está ali prestes a ser cometido pelos Estados Unidos e pela NATO, que "parecem querer lançar-se numa nova aventura militar". Eis a teoria da pescada aplicada à geopolítica: antes de o ser já "parece" que o era.
Reparem na subtil diferença entre "erro" e "crime". Nesta perspectiva, uma ditadura pode ser um erro mas o seu derrube será seguramente um crime. O que diria Marx destes seus discípulos entrincheirados na rua Soeiro Pereira Gomes?
Enquanto escrevo, ouço o ainda ditador da Líbia discursar em directo a propósito do 34º aniversário do seu proclamado regime de "poder popular". Menciona dezenas de vezes a palavra "povo" - o mais pervertido termo vindo da boca de qualquer tirano logo a seguir a "liberdade". Escuto-o na BBC falando para umas dezenas de pessoas arrebanhadas para o efeito, algumas das quais o interrompem de quando em quando, em gestos devidamente coreografados, com gritos de "líder eterno" e demais palavras de ordem que já ouvimos serem proclamadas por todas as multidões, grandes ou pequenas, em louvor de todos os ditadores em todos os quadrantes. Muammar Kadhafi, aparentando ser magnânimo, afirma que desde 1977 não tem nenhum cargo institucional da Líbia, onde todo o poder reside no "povo" e não pode, portanto, renunciar a posto algum.
Escuto isto enquanto vou reflectindo sobre a estranha alquimia do poder político que enebria e cega tantos dos seus detentores, incapazes de renunciarem a ele quando todas as evidências deveriam levá-los a proceder na direcção contrária. Penso no admirável exemplo de Winston Churchill, derrotado nas urnas pelo eleitorado britânico em Julho de 1945, dois meses após ter levado o Reino Unido à vitória na mais inclemente de todas as guerras. Conhecido o desaire eleitoral, limitou-se a comentar: "Fui sumariamente despedido pelo eleitorado britânico da futura condução da coisa pública." E abandonou Downing Street para escrever os seus livros e pintar as suas aguarelas.
«Neste país quem manda é o povo», insiste o "dóberman do pátio das traseiras do Magrebe" a quem a ONU chegou a confiar a presidência da sua Comissão de Direitos Humanos. O mesmo que em 2005 mandou matar o escritor Daif Gazal, que figurava na primeira linha dos que reclamavam liberdade. Antes de morrer, este opositor foi barbaramente torturado: cortaram-lhe os dedos para que não pudesse voltar a escrever.
Durante anos, o Ocidente perdoou todos os crimes ao carrasco de Daif Gazal. Há ainda hoje quem o defenda, alegando que o seu regime "laico" é o melhor antídoto contra o "fundamentalismo islâmico". Concluo como Ignacio Camacho: «La complacencia con Gadafi ha sido tan obscena, obsequiosa y evidente que no deja resquicio al disimulo.»
Por isso o tirano permanece impune no momento em que escrevo. Falta pouco para cair, mas cada dia em que se prolongar no poder é mais um dia de sofrimento para os líbios. E de vergonha para o mundo.
São Quatro da Tarde: a procura e a oferta uniram-se para me lixar: não há sapatos quarenta e três bonitos e económicos em lado algum.
Para mais tarde comparar:
Egipto: mantém-se o regime militar, fica tudo quase na mesma, mudam as caras, oxalá maior abertura política.
Líbia: ou Kadhafi fica e milhares de cidadãos vão (da pior maneira) - ou Kadhafi vai e a guerra civil instala-se.
Tunísia: democratiza-se: é o efeito "Cabo Verde": menos riqueza, menos cobiça, logo mais organização, melhor política e paz.
Independentemente destas opiniões, desejo muito que a democracia, a paz e o progresso cheguem a todos. Esses são bens universais, muito acima de diferenças e de quaisquer fronteiras.
Financiou o terrorismo internacional. Sob o seu mandato, pelo menos 250 presos políticos "desapareceram" misteriosamente. Os partidos são rigorosamente proibidos no país. A tristemente célebre Lei 71 pune a "dissidência", em casos extremos, com a pena de morte. Agora o ditador há mais tempo em funções no planeta não hesita em virar as armas contra o seu próprio povo para se perpetuar no poder: a tentativa de esmagamento do movimento pró-democracia na Líbia já ali provocou 173 mortos, segundo o Observatório de Direitos Humanos. Muammar Kadhafi, que procura censurar toda a informação, tem no entanto direito a assento oficial na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Não é preciso mais nada para se avaliar como é urgente a reforma das instituições internacionais e para se perceber a que ponto chegou o descrédito da ONU, que alguns sonham ver como sede de um futuro governo mundial.
Portugal, que em Dezembro de 2007 o recebeu com honras de estadista na lamentável cimeira dos ditadores realizada em Lisboa, mantém um envergonhado e vergonhoso silêncio sobre o massacre de cidadãos líbios às mãos dos jagunços de Kadhafi, como já muito bem o Rui Rocha sublinhou aqui. Um silêncio que não pode prolongar-se. Ser membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas não pode servir só para os habituais rodriguinhos de propaganda interna
Como dizia o outro, o mundo está perigoso. Vejam só: até o inamovível coronel Kadhafi, que permanece apenas há 42 anos como senhor absoluto da Líbia, anda a ser contestado nas ruas, respondendo aos protestos da forma expedita a que nos habituou noutras ocasiões: a tiro. Balanço provisório: 24 mortos. Só o embaixador português em Trípoli não reparou em nada.
Tanta agitação contra as ditaduras no mundo árabe deixa alguns colunistas nervosos: Maria João Avillez, na Sábado, acentua que não se deixa comover por revoluções, "francesas ou de flores", e não consegue deixar de cismar nos Irmãos Muçulmanos: "Acho-os terríveis e não encontro nenhuma boa razão, de peso e com substância, para pensar o contrário." Na mesma revista, o sociólogo Alberto Gonçalves vai mais longe: invoca o "Terror revolucionário francês" e - pasme-se - até o nazismo e o Holocausto a (des)propósito da queda de Mubarak. "É suficiente notar a forte hipótese de o Egipto livre e democrático dos sonhos se tornar, na prática, um Egipto institucionalmente islâmico", proclama o titular da página de fecho da Sábado, dando como provado este facto extraordinário: "O povo que reivindica nas ruas o direito à felicidade parece, em larga medida e a acreditar nos estudos de opinião, o mesmo povo que reivindica o direito à excisão feminina (que Mubarak baniu em 2007) ou à lapidação das adúlteras (que Mubarak proibia)."
Extraordinário ditador, que poupou o povo egípcio a tais terrores. Extraordinário Mubarak, tão amigo do Ocidente em geral e tão digno da admiração de Alberto Gonçalves em particular. E extraordinários "estudos de opinião" - não especificados pelo crédulo sociólogo - que "parecem" conjugar liberdade e lapidação no Egipto.
Não conheço nenhum outro pensador mundial capaz de associar um movimento pró-democracia à excisão feminina. Espero que o sociólogo da Sábado tenha registado a patente.