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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

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"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

A primeira fase da revolução na Tunísia

 

Concordo com o que escreve Nuno Gouveia, neste post: a revolução em curso na Tunísia deverá dar origem a eleições livres e um dos resultados mais prováveis será a vitória de uma força islâmica, porventura o Ennahda, Partido do Renascimento.

Fiz uma reportagem na Tunísia, há uns anos, e senti o mal-estar naquele país dominado pela imagem omnipresente de Zine Ben Ali, dos seus palácios e negócios. Escrevi na altura (o problema subsiste) que uma das grandes questões do país era a falta de empregos dos jovens, barril de pólvora com um efeito especial: como era comum o sistema de dotes, quem não tinha emprego, não tinha dinheiro e, por isso, também não casava. Os mais afortunados casavam tardiamente e nem sempre com as noivas de melhor educação ou de classes sociais favoráveis. Isto explicava a baixa taxa de natalidade (para a região) e originava uma tensão sexual que teria de explodir mais cedo ou mais tarde.

 

Ben Ali esforçou-se por esmagar os partidos islâmicos. E a repressão origina a radicalização. Não sei se os partidos islâmicos tunisinos serão muito radicais, mas o seu afastamento do poder por meios fraudulentos será uma péssima ideia, pois o génio está fora da garrafa. Em 1989, houve um processo de democratização na vizinha Argélia e a Frente de Salvação Islâmica (FIS) venceu as eleições municipais de 1990 e a primeira volta das legislativas de 1991. Não chegou a haver segunda volta e o processo foi interrompido em Janeiro de 1992, com a prisão dos líderes islâmicos. Foi uma opção trágica. A subsequente guerra civil fez 150 mil mortos.

A Tunísia será um caso observado em todo o Islão: os partidos vão escolher uma via mais turca, tentarão a versão social dos Irmãos Muçulmanos egípcios ou vão escolher a via anti-ocidental? Em 1990, quando o regime ainda admitia uma abertura, houve sondagens que deram a uma formação islâmica tunisina metade das intenções de votos, mas os sucessores do Harkat Nahida não serão de linha tão dura (Rachid Ghannouchi, líder do Ennadha, rejeita o radicalismo político).

Por outro lado, no não muito distante Egipto, basta andar pelas ruas do Cairo para perceber a força da Irmandade. Se houvesse ali eleições livres, os islâmicos provavelmente venciam, como o Hamas venceu em Gaza. E os líderes egípcios não se cansam de o referir, cada vez que alguém levanta a questão de eleições livres.

 

Enfim, no fundo este é o problema: o que é melhor, a democracia ou a farsa? Ter os "nossos sacanas" no poder ou permitir que estes povos decidam por si?

 

A propósito, ler este texto, de Francisco Seixas da Costa (imagem, a belíssima Kairouan, na Tunísia, uma das cidades santas do Islão)

O Continente esquecido

Nuno Gouveia, em Cachimbo de Magritte, responde aqui ao meu anterior post sobre a questão africana, no qual tento explicar que o homem branco não tem muita consciência da sua culpa.

Julgo que nesta polémica há duas posições distintas sobre o "continente esquecido", que é uma expressão feliz. Na minha opinião, o neo-colonialismo não pode ajudar África, pelo contrário, prolonga a sua agonia. O que pode ajudar África é a intervenção humanitária como a faz actualmente a Igreja Católica, levando em conta o desenvolvimento económico, a educação e a saúde, mas também o progresso moral das populações. E tudo ao mesmo tempo. Claro que estas missões são uma gota de água no oceano das misérias locais.

 

O autor de Cachimbo de Magritte escreve a dado passo o seguinte: "Quem poderá comprar os recursos e os bens africanos senão os países ricos? É evidente que uma empresa quando vai comprar os produtos africanos tenta obter o melhor preço. São essas as regras do mercado e não há volta dar".

Eu sou um pouco mais pessimista em relação aos benefícios do mercado, cuja liberdade depende da existência de vários compradores ou de opções de venda diferentes.

Conto uma pequena história da actualidade na Guiné-Bissau que mostra bem estes abismos. Os camponeses trocam caju por arroz. A proporção actual é de um quilo de arroz (o seu alimento principal) por quatro quilos de caju. Há 12 anos era de um para um. No final da década, o custo do arroz no mercado internacional rondava cem dólares por tonelada; o de caju era de 700 dólares. O mercado do caju é monopolístico, controlado por comerciantes indianos que fazem o preço que entendem. A castanha é comestível e da polpa não comestível extrai-se um óleo que serve para lubrificante de electrónica.

 

O assistencialismo dos países europeus também não poderá mudar a situação. Por vezes é mesmo perverso e um simples negócio. As populações habituam-se à assistência gratuita e deixam de procurar o próprio sustento, ficando dependentes dessa assistência, cujo custo chega a eliminar produtores locais. Seria ainda preciso mudar fronteiras e exigir melhor comportamento aos dirigentes locais, mas cada potência ex-colonial defende os seus interesses e mais nada. De resto, julgo que no essencial estamos de acordo, eu mais pessimista. Deixo aqui votos de bom ano para Nuno Gouveia e para Cachimbo de Magritte.   

A culpa do homem branco (uma polémica)

É sempre um luxo (infelizmente raro) poder manter uma polémica com alguém que escreve um post desta qualidade. Nuno Gouveia, em Cachimbo de Magritte responde a um post meu. Verifico que o autor concorda com alguns dos pontos essenciais do que escrevi e, por isso, vou centrar-me nas duas questões onde julgo haver discordância. Em primeiro lugar, o tema da culpa histórica; em segundo, a questão da democracia em África.

 

Nuno Gouveia começa por associar a questão da culpa do homem branco a correntes neomarxistas, o que julgo não ser exacto. De qualquer maneira, é preciso olhar para a realidade. A colonização de África pelos europeus foi especialmente brutal, talvez por ter sido tardia e na altura do auge ter havido teorias raciais que davam o homem branco como sendo superior. Estas ideias ainda não desapareceram.

Para o autor de Cachimbo de Magritte, "o colonialismo é um facto histórico" e continuar a responsabilizar os europeus pelo atraso estrutural africano é uma forma de "relativismo histórico". Surge também a referência à colonização de outros continentes, mas o argumento parece reforçar o que escrevi, já que a colonização da América foi obtida através do extermínio das populações nativas, destruição de civilizações (Maias e Incas) e exploração da escravatura. A expansão da Rússia foi feita à custa de regiões relativamente vazias. E sempre que enfrentaram Civilizações mais fortes, os europeus tiveram dificuldade em estabelecer o seu domínio, como aconteceu do Egipto ao Japão, áreas onde só no século XVIII se estabeleceu uma verdadeira supremacia europeia.

Do ponto de vista dos nativos que o sofreram na pele, é difícil encontrar efeitos positivos dos impérios europeus, apesar de nos últimos anos do colonialismo em África se ter apostado mais na educação ou medicina.

 

Parece que a réplica ignora um dos pontos cruciais do meu post: aquilo a que se chama vulgarmente neo-colonialismo (já estou a ouvir a crítica da cartilha marxista), no entanto o facto é que não conheço melhor designação. O Nuno pode optar por uma alternativa: chame-lhe desequilíbrio de trocas comerciais, por exemplo.

Penso ser impossível interpretar a África contemporânea sem perceber que a ordem económica mundial se limita a extrair as suas riquezas da forma mais barata possível. Como tentei argumentar, este esquema do neo-imperialismo é bem mais barato do que manter colónias que se podem tornar rebeldes. Nem sequer a África do Sul, onde a elite branca estava no poder, conseguiu escapar a esta lógica. As riquezas minerais, energéticas e agrícolas de África são gigantescas, certamente muito superiores às europeias.

 

Quando se fala em elites corruptas e jugo de ditadores oculta-se a circunstância de não haver elites em África. Os poderes coloniais nunca tiveram interesse em desenvolver elites locais e, quando o tentaram fazer, ocorreu a descolonização. Muitos dos ditadores eram militares de baixa patente em exércitos coloniais ou ex-guerrilheiros das guerras de independência. Todos geralmente pouco letrados. A verdadeira elite angolana, para citar o exemplo do autor, foi cilindrada e sobrevive no exílio ou em silêncio. Um grupo político apropriou-se das riquezas, mas isso é semelhante a muitos dos outros países subsarianos.

 

A última questão tem a ver com a democracia parlamentar de modelo europeu. Por que razão se exige a estes países fragmentados e sem identidade a execução regular de farsas eleitorais? Os ditadores fazem-se eleger pelo povo e passam a ser regimes democráticos, mas todos os cargos lucrativos e os órgãos de segurança são entregues à tribo do vencedor, que recebe uma fatia desproporcionada do bolo económico. Refira-se que este bolo é sobretudo constituído pelas licenças monopolísticas vendidas a europeus extractores de recursos ou a empresas de serviço europeias com bons contactos e que ficam confortavelmente instaladas nos seus lucrativos monopólios (não é preciso investir muito e a infra-estrutura continua péssima). Os chineses vieram entretanto reclamar a sua parte e os americanos também não querem perder as vastas oportunidades disponíveis. Estou a falar de licenças de petróleo ou de extracção de madeira ou de pescas, de minas de urânio ou de ouro. Estou a falar de construção de estradas, palácios, edifícios públicos e barragens, projectos agro-industriais e banca. O preço é sempre baixo porque os líderes gananciosos podem ser derrubados (lembrar, a título de exemplo, o colorido episódio da operação de mercenários na Guiné Equatorial, em 2004).

 

Por tudo isto, tenho dificuldade em acreditar nos faróis de democracia. Até 1993, a Costa do Marfim era um dos melhores exemplos africanos de desenvolvimento. Agora, está à beira da segunda guerra civil.

Pergunta Nuno Gouveia se o "povo africano deve estar condenado a viver sob o jugo de ditadores e elites corruptas que roubam os seus recursos para proveito próprio?".

Preferia responder não, mas julgo que sim, que está condenado, pois é isso mesmo que acontece há 500 anos, ou mais.

   

 

A questão africana

Henrique Raposo escreve este texto, com generalizações sobre o progresso em África, e Nuno Gouveia, em Cachimbo de Magritte apressa-se a dizer que se trata de um artigo muito importante, acrescentando que "apenas a democracia e a liberdade podem salvar a África da miséria". Penso que os dois autores embarcam em ilusões pouco construtivas. Raposo dá exemplos de países africanos desenvolvidos e espanta-se com o interesse dos media pelos Estados falhados. Ou seja, não se davam as notícias da Costa do Marfim, como não se deram as do Ruanda.

 

Na realidade, as elites corruptas não chegam para explicar a miséria africana. Estas elites são um sintoma do mal, não são a causa. O problema africano está sobretudo na ordem económica mundial, que condenou um continente riquíssimo à pobreza extrema. Nos últimos 500 anos, as potências coloniais não se limitaram a explorar a escravatura, mas eliminaram todas as unidades políticas que poderiam ter formado reinos ou impérios. O Benim, um dos exemplos de Henrique Raposo, recebeu o nome do Império do Benim (que ficava na actual Nigéria) e que formou uma entidade política que os portugueses ajudaram a neutralizar, mas que poderia ter evoluído naturalmente. Podia dar outros exemplos, como o Império do Mali, reino mandinga que sem interferência ocidental poderia ter facilmente dominado metade da actual Costa do Marfim, além do actual Mali, partes da Guiné e do Senegal.

Com as suas sociedades destruídas pela interferência colonial (que não teve só aspectos negativos) a África é hoje um mosaico de países artificiais, divididos por religiões e sobretudo profundos ódios tribais. O conflito na Costa do Marfim é apenas um dos muitos que fermentam na região. E a sua origem está nas questões étnicas.

 

Hoje, as potências coloniais europeias continuam a dominar a região e os americanos têm tentado obter uma parte do bolo, daí a viagem de Bush que Henrique Raposo refere. África é uma vasta fonte de matérias-primas. Quanto mais estratégicas, maior o caos. O caso da República Democrática do Congo é particularmente sinistro. A guerra civil na RDC fez mais de 4 milhões de vítimas mortais. Numa das suas regiões mais violentas, o Kivu, é extraído um mineral (Tântalo) crucial para telemóveis. A indústria electrónica não funciona sem este mineral que continua a matar gente. O país é também rico em cobre, diamantes, cobalto, zinco, magnésio, urânio. Tem fabulosos recursos hídricos e uma riqueza vegetal sem paralelo. Uns países africanos têm petróleo ou urânio, outros têm diamantes. Alguns mais desafortunados têm petróleo, ouro e diamantes.

Insisto: a ordem económica mundial é desfavorável para os africanos, que estão condenados à pobreza e ao atraso. Muitos destes países fragmentados por dentro não têm língua própria, são governados por elites corruptas que alguém corrompeu, quase sempre as antigas potências coloniais que exploram estes recursos com baixo custo. Reparem que a ordem neo-colonial é muito mais barata para as potências europeias do que a ordem colonial. As colónias eram caras e era preciso investir em estradas e escolas, manter os colonos e construir cidades, ferrovias e portos.

As democracias africanas não têm raízes e não são estáveis. Veja-se a Guiné-Bissau, por exemplo, onde todas as votações foram livres, mas altamente perturbadas pelas questões tribais, com um poder civil incapaz de se manter num contexto cultural onde o prestígio conta mais do que o número, com hierarquias subtis onde quase sempre os órgãos eleitos são quem menos manda.

       

O caso Wikileaks

As discussões portuguesas que tenho lido sobre o caso Wikileaks estão geralmente centradas na questão da liberdade de expressão e da liberdade de circulação de informação. Há excepções menos redutoras, como neste debate bem interessante.

Nas sociedades ocidentais existe ampla liberdade de expressão e de circulação de informação. Só por isso o caso Wikileaks é possível. Um país autoritário, como a China, pode impedir a difusão de notícias sobre o prémio nobel da paz. Barack Obama não pode fazer o mesmo em relação aos telegramas diplomáticos americanos. 

 

O que está em causa, aqui, é um roubo de segredos. A partir do momento em que foram roubados, estes segredos passaram a ser públicos, inúteis para o governo americano, deixaram de ser segredo. Ou seja, não fará qualquer sentido restringir a sua divulgação. Os EUA dizem que vão tentar todos os meios legais para silenciar a Wikileaks e os observadores portugueses espantam-se, dizendo que isto é horrível, quando me parece natural, desde que se usem meios legais.

A Wikileaks diz que está sob ataque e toda a gente acredita, apesar da informação continuar a fluir. A Time publicou uma capa de Julian Assange com a boca tapada pela bandeira americana. A imagem é sugestiva, mas provavelmente transmite uma ideia falsa. Damos por facto a alegação de Assange e achamos que os EUA mentem, ao dizerem que querem resolver a questão nos tribunais. E há quem diga que a acusação de violação resulta da manipulação da justiça sueca, mas ninguém se lembra da ordem inversa: e se Assange antecipou a divulgação dos telegramas para se livrar da acusação de violação?

É um tribunal sueco; a Suécia é um Estado de Direito; até prova em contrário, o suspeito é inocente; há duas queixosas. Onde está o problema?

 

Lentamente, começa a ser evidente que Wikileaks é política pura e dura. A diplomacia americana sofreu um golpe da dimensão do ciclone Katrina, que a deixará a coxear por muitos anos. Na tomada de decisões, os diplomatas passam à irrelevância e os espiões serão a partir de agora mais ouvidos.

A transparência perdeu.

 

Uma das críticas que li e ouvi era de jornalistas que se espantavam muito por outros jornalistas (como é o meu caso) adiantarem algumas dúvidas sobre a Wikileaks. Afinal, as intenções, financiamento, origem e métodos desta organização não são totalmente conhecidos. Quero dizer: a Wikileaks publicou os segredos de outros mas não é transparente. Ora, não tendo isto a ver com liberdade de informação (visto que a informação circula) não vejo razão para pôr em causa a honestidade intelectual de jornalistas que façam perguntas, por exemplo, sobre a forma como segredos tão sensíveis foram obtidos. Quem nos garante que haja 250 mil telegramas e como é possível que um simples soldado tenha acesso a informação tão sensível? A profissão de jornalista tem a ver com um cepticismo militante que nos obriga a não engolir com demasiada facilidade certas explicações.

Em muitas discussões, Assange é uma espécie de herói da liberdade. Mas os verdadeiros heróis da liberdade contemporâneos são Aung San Suu Kyi ou Liu XiaoBo, cuja luta pela liberdade de expressão e circulação de informação não tem excitado muito os espíritos. Repito: estes dois casos são de liberdade, e bastante desesperante, enquanto que Wikileaks pertence à política, o que gera sempre mais paixões.

 

Há duas semanas realizou-se em Lisboa uma cimeira da NATO que reviu a estratégia da organização. Um dos pontos discutidos tinha a ver com as ameaças, nomeadamente os ciberataques. Casos como este serão no futuro considerados como tal e resolvidos com dureza. Quando escrevi aqui que o caso Wikileaks poderá reduzir as liberdades na internet e não aumentá-las, fui ridicularizado, como se estivesse a dizer uma estupidez. Um membro da NATO a quem sejam roubados segredos vitais pode no futuro invocar o artigo quinto do tratado e travar qualquer divulgação pela internet nos países da aliança e nos parceiros externos. A divulgação num outro país qualquer será um acto militar hostil.

 

 

Acrescento que este post não visa convencer ninguém. Leio com grande interesse os telegramas divulgados pela Wikileaks e tenho aprendido muito com eles. Acho, no entanto, que este caso merece uma reflexão séria e, acima de tudo, uma análise mais política. A ilustração sublinha as minhas dúvidas: é extraída do vídeo de um ataque de helicóptero no Iraque, no qual morreram vários civis. Um momento brutal e cruel, que nos fez perceber melhor a realidade.

As novas vinhas da ira

Existe, como se sugere aqui, uma distinção injusta entre populismo de esquerda e de direita. Nos EUA, o Tea Party é descrito como um movimento populista, mas a mesma definição raramente surge no caso de Hugo Chávez e nunca no de Dilma Rousseff. Aí, já estamos perante idealismo.

 

Alguns observadores portugueses têm escrito que o populismo está em ascensão e dão o pior dos exemplos para afirmar a tese, a Europa. Nicolas Sarkozy ou Silvio Berlusconi são os suspeitos do costume, sobretudo quando tentam interpretar o desejo dos seus eleitorados em questões sensíveis como imigração ou multiculturalismo. Mas a comparação parece sempre forçada. Na Europa, é difícil encontrar populistas: eles estão em grupos minoritários e exteriores ao sistema, como partidos de extrema-direita e de extrema-esquerda, e contam-se pelos dedos os casos de formações do género que se aproximam da esfera do poder.

O populismo tem aspectos moralistas, mas sobretudo a ver com anti-elitismo e desconfiança em relação ao governo tradicional, aos políticos, às democracias parlamentares ou ao capitalismo. Nos anos 30, numa reacção alérgica à crise económica, houve um triunfo geral de teses populistas, associadas a duas ideologias sólidas da época, fascismo e comunismo. A retórica contra as elites quase levou estes regimes totalitários ao poder mundial, sustentou as piores catástrofes genocidas e tomou conta dos intelectuais. O inimigo era a própria cultura burguesa.

 

A crise de 2008 produziu um fenómeno semelhante, felizmente em escala inferior à dos anos 30. E onde estão os sinais deste populismo do século XXI? Não na Europa, mas no continente americano. A sul, surgem os populismos de esquerda, com Hugo Chávez, Dilma e Lula, os Kirchner ou ainda Evo Morales. Em numerosos comentários, estes são os bem intencionados e solidários. Mas o petismo, o chavismo ou o peronismo não se encontram entre os maiores adeptos da democracia parlamentar e são adversários do capitalismo liberal. A sua visão é de controlo cerrado do processo democrático, por exemplo através de sindicatos, e se necessário através de referendo. Eles querem o domínio dos meios de comunicação e tentam reduzir o debate, sufocando as oposições. Enfim: Argentina, Brasil e Venezuela podem ter sinais deste populismo de esquerda, mas não os terão na mesma quantidade. E as tendências não são inevitáveis (Dilma Rousseff acabará por ser uma excelente presidente ou será um desastre, mas foi a escolhida em eleições livres).

No debate nacional, a ascensão de populismos de direita, como o movimento Tea Party, merece interpretação muito menos benévola. Não é referida a natureza fragmentária deste movimento de revolta, onde há desde lunáticos a pessoas que perderam as suas casas, grupúsculos que dizem uma coisa e outros que dizem o seu contrário. Mas a franja lunática é sempre a mais referida, numa opção pelo folclore, em vez da substância.

 

Importa sublinhar que a indignação das pessoas é genuína; o sistema democrático não defendeu os eleitores e os partidos parecem incapazes de renovação. O escândalo das execuções hipotecárias, nos EUA, penalizou os pequenos e defendeu os grandes, embora fossem estes os verdadeiros culpados. É a mesma revolta dos anos 30, quando as poupanças de uma vida eram dissipadas em poucas semanas de inflação que ninguém compreendia.

A irritação dos eleitorados ainda não atingiu o patamar de As Vinhas da Ira, mas há semelhanças, porque estamos perante a mesma história: "eles" mentiram-nos, quando nos disseram que bastava ser um bom cidadão e cumprir as regras.

Julgo que a tendência do futuro conduz ao agravamento desta vingança dos eleitores, até porque os bancos foram salvos com o dinheiro do público e continuam a fazer os mesmos disparates que já levaram ao desastre de 2008.

Se a crise continua, quem é que as pessoas vão culpar? Os políticos que permitem a ganância e os bancos que a praticam. A democracia que salvou os capitalistas com o dinheiro dos eleitores, mas que não salvou os eleitores.

Em resumo, o mundo poderá radicalizar-se no sentido do protesto. Vivemos de certa maneira numa época de mudança, mas esta mudança imprevisível será provavelmente pouco virtuosa.