Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

Os valores acima dos interesses

A Líbia constitui "o pior pesadelo" dos dias que correm. A opinião, sem rodeios de qualquer espécie, foi ontem expressa por Mohamed ElBaradei nas Conferências do Estoril, que encerraram esta segunda edição com chave de ouro ao darem o palco ao ex-director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica, Prémio Nobel da Paz de 2005. Durante cerca de hora e meia, que pareceu pouco a quem assistia no Centro de Congressos do Estoril, o candidato à próxima eleição presidencial no Egipto defendeu uma intervenção mais activa da comunidade internacional para impedir a continuação dos massacres da população civil às ordens dos esbirros de Muammar Kadhafi, o ditador que permanece no poder desde Setembro de 1969, cego e surdo às aspirações de liberdade dos líbios.

Voz autorizada na defesa dos direitos humanos, participante activo na revolução de Fevereiro que levou à queda do regime despótico de Hosni Mubarak no Cairo, ElBaradei foi claro: "Não podemos aceitar que os ditadores massacrem os seus povos. Gostaria de ver uma intervenção internacional mais robusta, mais activa na Líbia." Na sua perspectiva, as relações internacionais contemporâneas são indissociáveis do respeito permanente da dignidade humana. "Temos de agir como mebros da mesma família global. A Líbia é um grande teste. Temos de espalhar esta mensagem: não continuaremos quedos e mudos, não assistiremos impávidos ao massacre de civis."

'A natureza das revoluções no Magrebe e no Médio Oriente' foi o tema abordado nesta excelente conferência, acompanhada com atenção por uma vasta plateia, em que se integravam muitos jovens. Baradei afirmou que o mundo "pode e deve ajudar" as populações do mundo islâmico que lutam pela liberdade - contribuindo para o "desenvolvimento económico, a coesão social e a promoção dos direitos humanos" em países como o Egipto, onde os militares estão com "demasiada pressa" em devolver o poder aos civis. Na sua perspectiva, a elaboração de uma nova Constituição devia ser o primeiro passo para fundar um regime democrático no Cairo - de preferência com um artigo basilar inspirado na primeira norma da lei fundamental da Alemanha: "A dignidade humana é inviolável."

Esta foi a grande mensagem que deixou no Estoril: "Não podemos pôr os interesses antes dos valores." Uma mensagem que contraria os cultores da realpolitik, sempre prontos a estabelecer relações cordiais com os piores tiranos contemporâneos. "Os EUA e a Europa apoiavam as ditaduras [na Tunísia e no Egipto] recorrendo ao argumento da estabilidade. No segundo dia das revoltas populares, Hillary Clinton chegou a dizer que o governo de Mubarak era estável. Como pode um regime que governa durante 30 anos com lei marcial ser um modelo de estabilidade? Nunca há estabilidade quando os governos não são livremente eleitos pelo povo."

Estive entre a assistência que o aplaudiu com entusiasmo ao fim da tarde de ontem. Gosto de ouvir um Nobel da Paz falar assim.

São Quatro da Tarde: Para Mais Tarde Comparar

São Quatro da Tarde: a procura e a oferta uniram-se para me lixar: não há sapatos quarenta e três bonitos e económicos em lado algum.

 

rvicent

 

 

 

Para mais tarde comparar:

Egipto: mantém-se o regime militar, fica tudo quase na mesma, mudam as caras, oxalá maior abertura política.

Líbia: ou Kadhafi fica e milhares de cidadãos vão (da pior maneira) - ou Kadhafi vai e a guerra civil instala-se.

Tunísia: democratiza-se: é o efeito "Cabo Verde": menos riqueza, menos cobiça, logo mais organização, melhor política e paz.

Independentemente destas opiniões, desejo muito que a democracia, a paz e o progresso cheguem a todos. Esses são bens universais, muito acima de diferenças e de quaisquer fronteiras.

Propagação Democrática

Na vaga de manifestações e tentativas de revolução que percorre o mundo muçulmano, aquilo que mais me surpreende é o contágio. Não era necessário que uma manifestação em Tunes se propagasse ao Cairo. Mas isso aconteceu: de umas cidades para as outras, foi-se formando uma linha de união entre os diversos países islâmicos.

 

A unidade entre países normalmente não é óbvia. A consciência colectiva das semelhanças entre países nem sempre existe mesmo quando essas semelhanças, vistas de fora, parecem evidentes. Em geral, sucede o contrário: o nacionalismo e o sentimento exacerbado de identidade e de diferença tendem mais a ser a regra do que a excepção. E, no entanto, aquelas diferentes nações muçulmanas foram seguindo o exemplo de umas para as outras.

 

Qual o mínimo de características e causas comuns necessário à propagação internacional da revolta democrática? Foi necessário um mesmo sentimento difuso de insatisfação económica e política, desemprego elevado, população jovem, informatizada e internetizada, subida de preços, língua e religião essencialmente comuns? Ou bastava menos do que isso tudo?

 

Se o mínimo necessário à propagação da democracia for pouco exigente, talvez possamos esperar que a revolta democrática se extenda, por exemplo, a Angola e a tantas outras não-democracias. Mas será que os angolanos, ou outros, podem sentir-se suficientemente próximos das nações muçulmanas, de modo a deixarem-se influenciar e seguir o exemplo? (Como, aparentemente, a América Latina se sentiu relativamente a Portugal e Espanha na transição para a democracia).

 

Será que a ausência de instituições democráticas e a falta de oportunidades são suficientes para criar um sentimento de irmandade que funcione como canal de propagação da revolta democrática, alargando-a para além das fronteiras linguísticas, culturais e religiosas?

 

Seria bom que fossem.

 

O terror, a excisão, o Holocausto

  

Como dizia o outro, o mundo está perigoso. Vejam só: até o inamovível coronel Kadhafi, que permanece apenas há 42 anos como senhor absoluto da Líbia, anda a ser contestado nas ruas, respondendo aos protestos da forma expedita a que nos habituou noutras ocasiões: a tiro. Balanço provisório: 24 mortos. Só o embaixador português em Trípoli não reparou em nada.

Tanta agitação contra as ditaduras no mundo árabe deixa alguns colunistas nervosos: Maria João Avillez, na Sábado, acentua que não se deixa comover por revoluções, "francesas ou de flores", e não consegue deixar de cismar nos Irmãos Muçulmanos: "Acho-os terríveis e não encontro nenhuma boa razão, de peso e com substância, para pensar o contrário." Na mesma revista, o sociólogo Alberto Gonçalves vai mais longe: invoca o "Terror revolucionário francês" e - pasme-se - até o nazismo e o Holocausto a (des)propósito da queda de Mubarak. "É suficiente notar a forte hipótese de o Egipto livre e democrático dos sonhos se tornar, na prática, um Egipto institucionalmente islâmico", proclama o titular da página de fecho da Sábado, dando como provado este facto extraordinário: "O povo que reivindica nas ruas o direito à felicidade parece, em larga medida e a acreditar nos estudos de opinião, o mesmo povo que reivindica o direito à excisão feminina (que Mubarak baniu em 2007) ou à lapidação das adúlteras (que Mubarak proibia)."

Extraordinário ditador, que poupou o povo egípcio a tais terrores. Extraordinário Mubarak, tão amigo do Ocidente em geral e tão digno da admiração de Alberto Gonçalves em particular. E extraordinários "estudos de opinião" - não especificados pelo crédulo sociólogo - que "parecem" conjugar liberdade e lapidação no Egipto.

Não conheço nenhum outro pensador mundial capaz de associar um movimento pró-democracia à excisão feminina. Espero que o sociólogo da Sábado tenha registado a patente.

Excursionista me confesso

Em Cachimbo de Magritte habituei-me a ler um blogue onde se pensa. Mas em relação à crise egípcia, alguns dos autores locais têm andado aos papéis, ainda por cima desvalorizando opiniões diferentes das suas com truques de retórica, sobretudo mudando de posição em cada dia e acusando outros de inconsistência. Falo das reacções à minha posição sobre o tema, ou à do Pedro Correia, mais abaixo, interpretando-as como tontas capitulações ocidentais perante o perigo iminente das hordas bárbaras. Uma crítica minha na caixa de comentários recebeu uma resposta intrigante, daquelas que alguns costumam dar a tolos ignaros.

Outro autor do mesmo blogue, Carlos Botelho, diz que tem cautelas e escreve isto, mas suponho que, depois do que tem escrito, deverá manifestar no futuro alguma dificuldade em opinar sobre o Irão. O mesmo autor faz um post com uma imagem de Hitler a conversar com o grande mufti de Jerusalém, em 1944, numa referência às crises no Médio Oriente, mas infelizmente não explicando o seu ponto.

Julgo que estas leituras dão que pensar.

 

Egipto: o que escreve Vargas Llosa

 

 

Uma pequena multidão de comentadores domésticos continua a dirigir farpas aos movimentos pró-democracia nos países árabes, chorando a queda dos ditadores Ben Ali e Mubarak. Neste desfile, Alberto Gonçalves não podia faltar à chamada. Lá vem ele, no DN, juntar-se ao coro: "Após a queda de Mubarak, as odes dos jornalistas à alegria do povo e as invectivas aos 'cínicos' que não a partilham resultam de óptimas intenções, mas de péssima memória. A História recente ensina que a felicidade de certos transtornados religiosos tem um preço: a nossa."

Extraordinário: assume-se a defesa póstuma da ditadura para lançar um vigoroso anátema sobre a democracia que ainda nem começou a ser construída. Como se o mundo árabe sofresse de um atavismo genético que o torna incapaz de conviver ad seculum seculorum com estados de direito e o respeito escrupuloso dos direitos humanos. Nessa convicção, Gonçalves vergasta os repórteres que têm relatado o que testemunharam no Egipto: "Se calhar, os jornalistas confundem o seu ofício com a repetição de clichés, na convicção um bocadinho infantil de que qualquer protesto público contra uma ditadura acarinha valores opostos aos ditatoriais."

Não sei se entre esses jornalistas que tanto enojam o colunista do DN se inclui John Simpson, o prestigiado editor de assuntos internacionais da BBC, que escreve do Cairo sem a menor dúvida: "A deposição do presidente Hosni Mubarak é tão significativa como o colapso do bloco soviético na Europa de Leste em 1989." Um cliché, diria certamente Alberto Gonçalves, talvez saudoso daqueles tranquilos tempos em que o Muro de Berlim se erguia como fronteira natural à expansão da democracia. E o que dirá este sociólogo do mais recente artigo de Mario Vargas Llosa publicado no El País, precisamente sobre os ventos da liberdade que percorrem o Magrebe e o Médio Oriente? "O Ocidente liberal e democrático deveria celebrar este facto como uma extraordinária confirmação da vigência universal dos valores que representa a cultura da liberdade e dirigir todo o seu apoio aos povos árabes neste momento da sua luta contra os tiranos»,  sublinha o Nobel da Literatura-2010.

Felizmente Simpson e Vargas Llosa têm vistas menos curtas do que a agremiação de admiradores portugueses de Mubarak. Como nada acontece por acaso, é precisamente do Irão que nos chegam hoje notícias de corajosos levantamentos populares contra a ditadura, na linha das impressionantes manifestações de Junho de 2009. É óbvio o efeito de contágio dos acontecimentos da Tunísia e do Egipto. Perante tanta "agitação", os cínicos de serviço por cá, tal como os aiatolas por lá, devem estremecer de horror.

 

Imagem: manifestação contra a ditadura iraniana

Que horror, o povo nas ruas

 

 

Uma revolta popular pacífica, ordeira, participadíssima, onde as únicas bandeiras são as nacionais, deita abaixo uma tirania. Sem necessidade de intervenção dos marines norte-americanos, sem líderes "carismáticos", sem partidos ou igrejas a "organizar" as multidões.

Devia ser motivo de congratulação em todo o mundo democrático. Mas não é. Em redutos de opinião, bem entrincheirados nas suas certezas graníticas, analistas derramam por jornais e blogues o seu imenso desdém pela página histórica que acaba de se virar no Cairo. Como se os egípcios, com os seus cinco mil anos de civilização, não estivessem minimamente preparados para a democracia e precisassem para o efeito do aval das ilustres bempensâncias cá do sítio.

Fernando Martins n' O Cachimbo de Magritte, apressa-se a enumerar um inevitável cortejo de desgraças: «Certamente provocará contra-revolução, guerra contra inimigos internos e externos, terror e caos económico e social.» Verdadeiramente estarrecedor. «Quem acredita que o Egipto teve o seu '25 de Abril' deve preparar-se para um PREC islamita triunfal», exclama, na mesma linha, João Pereira Coutinho no Correio da Manhã. Como antes dele fez Vasco Graça Moura, ao escrever no DN sem dúvidas de qualquer espécie: «Está na cara que [as coisas] vão correr mal, mesmo muito mal.» E hoje Vasco Pulido Valente, bem ao seu estilo, proclama no Público: «Presumindo a mais do que provável (se não inevitável) interferência do Irão, como imaginar que se resolveria fosse o que fosse com eleições? O único resultado seria quase com certeza o alargamento e o reforço da 'Irmandade Muçulmana'». Suprema heresia, optar por eleições...

Leio estas opiniões e parece que estou a escutar Glenn Beck, na Fox News, com as suas «tiradas histéricas» (a definição é dos Los Angeles Times) contra o "avanço do extremismo islâmico" que só ele, dotado de vistas mais apuradas do que o comum dos mortais, consegue descortinar.

Ah, como tudo soa bem melhor quando a "democracia" é imposta pelos fuzis do Pentágono e os ditadores, em vez de caírem por determinação do povo, cedem o poder por pressão dos tanques.

Os intelectuais portugueses perante o Egipto

 

A intelectualidade portuguesa nunca dispensou a sobranceria. E tem outra característica, um enorme desprezo pelo povo. Estes dois elementos contaminam geralmente a sua visão do mundo. Ela é sobranceira e elitista. Esqueci-me de outro aspecto: os intelectuais portugueses dificilmente aceitam uma crítica.

 

Escrevo este post depois de visitar um blogue onde costumo ler alguns excelentes autores. Tentei entrar numa discussão na caixa de comentários, acho que escrevi coisas óbvias, mas esbarrei num muro de incompreensão e fui corrido a deselegâncias.

O tema era o Egipto e a forma como de repente uma série de comentadores portugueses (ao arrepio do que se lê em jornais de todo o mundo) decidiu que a revolução egípcia é má e anuncia coisas terríveis. Uma catástrofe, isto de um povo querer ditar o seu destino. A ideia vem geralmente associada a um sub-enredo segundo o qual qualquer pessoa que aprecie os acontecimentos é um idiota sem cura.

 

Num plano mais sério, um autor como Vasco Pulido Valente escreve isto:

 

"Não percebo por que razão os políticos divagam e os jornais se entusiasmam. Não chegou o delírio democrático depois da queda do muro e do colapso da URSS, para perceber que uma insurreição popular não leva forçosamente a uma democracia?" (tirei do blogue do João Gonçalves, onde podem ler o texto completo)

O autor vai por ali fora: a democracia é impossível no Egipto por haver muita miséria, pobreza, ignorância. Não há partidos nem instituições, não haverá elites, os radicais vão tomar o poder e até o Irão vai ajudar à festa. No fundo, aceita-se que a crise do Médio Oriente é como uma queda do muro de Berlim, mas o resultado será necessariamente pior do que aquilo que existia. Portanto... Bem, a partir daqui, a tese é um pouco mais confusa.