Financiou o terrorismo internacional. Sob o seu mandato, pelo menos 250 presos políticos "desapareceram" misteriosamente. Os partidos são rigorosamente proibidos no país. A tristemente célebre Lei 71 pune a "dissidência", em casos extremos, com a pena de morte. Agora o ditador há mais tempo em funções no planeta não hesita em virar as armas contra o seu próprio povo para se perpetuar no poder: a tentativa de esmagamento do movimento pró-democracia na Líbia já ali provocou 173 mortos, segundo o Observatório de Direitos Humanos. Muammar Kadhafi, que procura censurar toda a informação, tem no entanto direito a assento oficial na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Não é preciso mais nada para se avaliar como é urgente a reforma das instituições internacionais e para se perceber a que ponto chegou o descrédito da ONU, que alguns sonham ver como sede de um futuro governo mundial.
Portugal, que em Dezembro de 2007 o recebeu com honras de estadista na lamentável cimeira dos ditadores realizada em Lisboa, mantém um envergonhado e vergonhoso silêncio sobre o massacre de cidadãos líbios às mãos dos jagunços de Kadhafi, como já muito bem o Rui Rocha sublinhou aqui. Um silêncio que não pode prolongar-se. Ser membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas não pode servir só para os habituais rodriguinhos de propaganda interna
Depois de José Pacheco Pereira, também Vasco Graça Moura se debruça, angustiado, sobre os perigos do fundamentalismo islâmico num texto de pendor apocalíptico em que não há uma só linha de congratulação pela queda de Ben Ali na Tunísia e Hosni Mubarak no Egipto - ditadores que perfaziam 53 anos somados de mandato, com o requinte suplementar, no caso egípcio, de que já estava praticamente assegurada a sucessão para um dos rebentos do cleptocrata, travestindo a república em monarquia, em jeito de regresso aos tempos faraónicos do rei Faruk.
Bom estilista do idioma, Graça Moura compõe o seu texto no DN em jeito de valsa lenta que vai acelerando e crescendo de emoção à medida que os parágrafos se sucedem.
Primeiro parágrafo: «O mundo ocidental deveria olhar com grande apreensão as perturbações consecutivas que ali [Tunísia e Egipto] estão a acontecer e ameaçam alastrar rapidamente aos restantes países islâmicos do Médio Oriente e do Norte de África.»
Segundo parágrafo: «Está na cara que [as coisas] vão correr mal, mesmo muito mal.»
Quarto parágrafo: «O rastilho do fundamentalismo islâmico alastrará imparavelmente pelos caminhos da Al-Qaeda a todo o mundo árabe, ainda por cima com o risco de também acabar por envolver a Turquia.»
Quinto parágrafo: «O Ocidente não está já em condições de se defender, por falta de valores éticos e cívicos que foi dissipando em nome de uma permissividade politicamente correcta e desastrosa.»
Custa-me entender três coisas.
Primeira: que um democrata não se congratule calorosamente, em termos inequívocos, com a queda de um ditador.
Segunda: que seja sempre invocado o exemplo do Irão de 1979 como uma espécie de garantia prévia de que os movimentos pró-democracia no mundo islâmico estão condenados a ser mal sucedidos. Que eu saiba, a Indonésia também é um país islâmico - é aliás o maior país islâmico do globo - e transitou com sucesso da ditadura para a democracia no final da década de 90.
Terceira e última: que não se perceba que todos estes persistentes receios são afinal a prova mais evidente de que as ditaduras foram incapazes de travar o passo à ameaça fundamentalista. E como poderiam ter sido, designadamente no Egipto, sob o mando despótico e decrépito de Mubarak?
Lamento, sinceramente, que Graça Moura não tivesse espaço, tempo ou paciência para acrescentar um parágrafo ao seu texto. Um parágrafo em que aludisse à corrupção, à pobreza, às desigualdades, à repressão, às eleições fraudulentas, à censura aos meios de informação, à falta de liberdades fundamentais no Egipto. Por um simples motivo: este quadro confrangedor é que constitui o maior caldo de cultura do extremismo islâmico. Não perceber isto é não perceber o fundamental.
Nuno Gouveia, em Cachimbo de Magritte, responde aqui ao meu anterior post sobre a questão africana, no qual tento explicar que o homem branco não tem muita consciência da sua culpa.
Julgo que nesta polémica há duas posições distintas sobre o "continente esquecido", que é uma expressão feliz. Na minha opinião, o neo-colonialismo não pode ajudar África, pelo contrário, prolonga a sua agonia. O que pode ajudar África é a intervenção humanitária como a faz actualmente a Igreja Católica, levando em conta o desenvolvimento económico, a educação e a saúde, mas também o progresso moral das populações. E tudo ao mesmo tempo. Claro que estas missões são uma gota de água no oceano das misérias locais.
O autor de Cachimbo de Magritte escreve a dado passo o seguinte: "Quem poderá comprar os recursos e os bens africanos senão os países ricos? É evidente que uma empresa quando vai comprar os produtos africanos tenta obter o melhor preço. São essas as regras do mercado e não há volta dar".
Eu sou um pouco mais pessimista em relação aos benefícios do mercado, cuja liberdade depende da existência de vários compradores ou de opções de venda diferentes.
Conto uma pequena história da actualidade na Guiné-Bissau que mostra bem estes abismos. Os camponeses trocam caju por arroz. A proporção actual é de um quilo de arroz (o seu alimento principal) por quatro quilos de caju. Há 12 anos era de um para um. No final da década, o custo do arroz no mercado internacional rondava cem dólares por tonelada; o de caju era de 700 dólares. O mercado do caju é monopolístico, controlado por comerciantes indianos que fazem o preço que entendem. A castanha é comestível e da polpa não comestível extrai-se um óleo que serve para lubrificante de electrónica.
O assistencialismo dos países europeus também não poderá mudar a situação. Por vezes é mesmo perverso e um simples negócio. As populações habituam-se à assistência gratuita e deixam de procurar o próprio sustento, ficando dependentes dessa assistência, cujo custo chega a eliminar produtores locais. Seria ainda preciso mudar fronteiras e exigir melhor comportamento aos dirigentes locais, mas cada potência ex-colonial defende os seus interesses e mais nada. De resto, julgo que no essencial estamos de acordo, eu mais pessimista. Deixo aqui votos de bom ano para Nuno Gouveia e para Cachimbo de Magritte.
É sempre um luxo (infelizmente raro) poder manter uma polémica com alguém que escreve um post desta qualidade. Nuno Gouveia, em Cachimbo de Magritte responde a um post meu. Verifico que o autor concorda com alguns dos pontos essenciais do que escrevi e, por isso, vou centrar-me nas duas questões onde julgo haver discordância. Em primeiro lugar, o tema da culpa histórica; em segundo, a questão da democracia em África.
Nuno Gouveia começa por associar a questão da culpa do homem branco a correntes neomarxistas, o que julgo não ser exacto. De qualquer maneira, é preciso olhar para a realidade. A colonização de África pelos europeus foi especialmente brutal, talvez por ter sido tardia e na altura do auge ter havido teorias raciais que davam o homem branco como sendo superior. Estas ideias ainda não desapareceram.
Para o autor de Cachimbo de Magritte, "o colonialismo é um facto histórico" e continuar a responsabilizar os europeus pelo atraso estrutural africano é uma forma de "relativismo histórico". Surge também a referência à colonização de outros continentes, mas o argumento parece reforçar o que escrevi, já que a colonização da América foi obtida através do extermínio das populações nativas, destruição de civilizações (Maias e Incas) e exploração da escravatura. A expansão da Rússia foi feita à custa de regiões relativamente vazias. E sempre que enfrentaram Civilizações mais fortes, os europeus tiveram dificuldade em estabelecer o seu domínio, como aconteceu do Egipto ao Japão, áreas onde só no século XVIII se estabeleceu uma verdadeira supremacia europeia.
Do ponto de vista dos nativos que o sofreram na pele, é difícil encontrar efeitos positivos dos impérios europeus, apesar de nos últimos anos do colonialismo em África se ter apostado mais na educação ou medicina.
Parece que a réplica ignora um dos pontos cruciais do meu post: aquilo a que se chama vulgarmente neo-colonialismo (já estou a ouvir a crítica da cartilha marxista), no entanto o facto é que não conheço melhor designação. O Nuno pode optar por uma alternativa: chame-lhe desequilíbrio de trocas comerciais, por exemplo.
Penso ser impossível interpretar a África contemporânea sem perceber que a ordem económica mundial se limita a extrair as suas riquezas da forma mais barata possível. Como tentei argumentar, este esquema do neo-imperialismo é bem mais barato do que manter colónias que se podem tornar rebeldes. Nem sequer a África do Sul, onde a elite branca estava no poder, conseguiu escapar a esta lógica. As riquezas minerais, energéticas e agrícolas de África são gigantescas, certamente muito superiores às europeias.
Quando se fala em elites corruptas e jugo de ditadores oculta-se a circunstância de não haver elites em África. Os poderes coloniais nunca tiveram interesse em desenvolver elites locais e, quando o tentaram fazer, ocorreu a descolonização. Muitos dos ditadores eram militares de baixa patente em exércitos coloniais ou ex-guerrilheiros das guerras de independência. Todos geralmente pouco letrados. A verdadeira elite angolana, para citar o exemplo do autor, foi cilindrada e sobrevive no exílio ou em silêncio. Um grupo político apropriou-se das riquezas, mas isso é semelhante a muitos dos outros países subsarianos.
A última questão tem a ver com a democracia parlamentar de modelo europeu. Por que razão se exige a estes países fragmentados e sem identidade a execução regular de farsas eleitorais? Os ditadores fazem-se eleger pelo povo e passam a ser regimes democráticos, mas todos os cargos lucrativos e os órgãos de segurança são entregues à tribo do vencedor, que recebe uma fatia desproporcionada do bolo económico. Refira-se que este bolo é sobretudo constituído pelas licenças monopolísticas vendidas a europeus extractores de recursos ou a empresas de serviço europeias com bons contactos e que ficam confortavelmente instaladas nos seus lucrativos monopólios (não é preciso investir muito e a infra-estrutura continua péssima). Os chineses vieram entretanto reclamar a sua parte e os americanos também não querem perder as vastas oportunidades disponíveis. Estou a falar de licenças de petróleo ou de extracção de madeira ou de pescas, de minas de urânio ou de ouro. Estou a falar de construção de estradas, palácios, edifícios públicos e barragens, projectos agro-industriais e banca. O preço é sempre baixo porque os líderes gananciosos podem ser derrubados (lembrar, a título de exemplo, o colorido episódio da operação de mercenários na Guiné Equatorial, em 2004).
Por tudo isto, tenho dificuldade em acreditar nos faróis de democracia. Até 1993, a Costa do Marfim era um dos melhores exemplos africanos de desenvolvimento. Agora, está à beira da segunda guerra civil.
Pergunta Nuno Gouveia se o "povo africano deve estar condenado a viver sob o jugo de ditadores e elites corruptas que roubam os seus recursos para proveito próprio?".
Preferia responder não, mas julgo que sim, que está condenado, pois é isso mesmo que acontece há 500 anos, ou mais.
Henrique Raposo escreve este texto, com generalizações sobre o progresso em África, e Nuno Gouveia, em Cachimbo de Magritte apressa-se a dizer que se trata de um artigo muito importante, acrescentando que "apenas a democracia e a liberdade podem salvar a África da miséria". Penso que os dois autores embarcam em ilusões pouco construtivas. Raposo dá exemplos de países africanos desenvolvidos e espanta-se com o interesse dos media pelos Estados falhados. Ou seja, não se davam as notícias da Costa do Marfim, como não se deram as do Ruanda.
Na realidade, as elites corruptas não chegam para explicar a miséria africana. Estas elites são um sintoma do mal, não são a causa. O problema africano está sobretudo na ordem económica mundial, que condenou um continente riquíssimo à pobreza extrema. Nos últimos 500 anos, as potências coloniais não se limitaram a explorar a escravatura, mas eliminaram todas as unidades políticas que poderiam ter formado reinos ou impérios. O Benim, um dos exemplos de Henrique Raposo, recebeu o nome do Império do Benim (que ficava na actual Nigéria) e que formou uma entidade política que os portugueses ajudaram a neutralizar, mas que poderia ter evoluído naturalmente. Podia dar outros exemplos, como o Império do Mali, reino mandinga que sem interferência ocidental poderia ter facilmente dominado metade da actual Costa do Marfim, além do actual Mali, partes da Guiné e do Senegal.
Com as suas sociedades destruídas pela interferência colonial (que não teve só aspectos negativos) a África é hoje um mosaico de países artificiais, divididos por religiões e sobretudo profundos ódios tribais. O conflito na Costa do Marfim é apenas um dos muitos que fermentam na região. E a sua origem está nas questões étnicas.
Hoje, as potências coloniais europeias continuam a dominar a região e os americanos têm tentado obter uma parte do bolo, daí a viagem de Bush que Henrique Raposo refere. África é uma vasta fonte de matérias-primas. Quanto mais estratégicas, maior o caos. O caso da República Democrática do Congo é particularmente sinistro. A guerra civil na RDC fez mais de 4 milhões de vítimas mortais. Numa das suas regiões mais violentas, o Kivu, é extraído um mineral (Tântalo) crucial para telemóveis. A indústria electrónica não funciona sem este mineral que continua a matar gente. O país é também rico em cobre, diamantes, cobalto, zinco, magnésio, urânio. Tem fabulosos recursos hídricos e uma riqueza vegetal sem paralelo. Uns países africanos têm petróleo ou urânio, outros têm diamantes. Alguns mais desafortunados têm petróleo, ouro e diamantes.
Insisto: a ordem económica mundial é desfavorável para os africanos, que estão condenados à pobreza e ao atraso. Muitos destes países fragmentados por dentro não têm língua própria, são governados por elites corruptas que alguém corrompeu, quase sempre as antigas potências coloniais que exploram estes recursos com baixo custo. Reparem que a ordem neo-colonial é muito mais barata para as potências europeias do que a ordem colonial. As colónias eram caras e era preciso investir em estradas e escolas, manter os colonos e construir cidades, ferrovias e portos.
As democracias africanas não têm raízes e não são estáveis. Veja-se a Guiné-Bissau, por exemplo, onde todas as votações foram livres, mas altamente perturbadas pelas questões tribais, com um poder civil incapaz de se manter num contexto cultural onde o prestígio conta mais do que o número, com hierarquias subtis onde quase sempre os órgãos eleitos são quem menos manda.