Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

Uma vaga de mudança

 

No início, muitos autores portugueses, sobretudo de direita, não compreenderam a importância do que se estava a passar nos países árabes. As revoluções na Tunísia e, logo a seguir no Egipto, anunciam alterações na ordem mundial, com o fim de regimes autoritários e uma nova vaga de democratizações no planeta. 2011 pode ser um ano importantíssimo na história do século. Mas os primeiros textos de certos autores eram tentativas de negar o óbvio, recheados de citações sombrias e terríveis papões que viriam engolir o Ocidente.

 

Em Portugal, existe dificuldade em debater temas e aceitar críticas. Isso notou-se na primeira fase da discussão. Para alguns, os acontecimentos no Médio Oriente e Norte de África eram uma catástrofe, tendo necessariamente de dar origem a regimes ainda piores do que os existentes. O corolário deste determinismo histórico era de que seria melhor tudo ter ficado como estava. E as imagens do que parecia ser uma festa pacífica no Cairo ou Tunes eram tidas como interpretações de repórteres deslumbrados.

Agora, a tese é impossível de defender no caso Líbio (não se percebe o que possa ser pior do que o regime de Kadhafi). O ditador líbio é um genocida que não hesita em disparar contra o próprio povo. Kadhafi não medirá as suas acções e fará muitas vítimas antes de uma queda que julgo ser inevitável.

 

 

 

Mas o problema não vai desaparecer. Haverá agitação social em todos os países da região, de Marrocos ao Irão. Ninguém deverá ficar a salvo, nem a Síria, nem a Arábia Saudita. As pessoas têm acesso a estações de televisão como a Al-Jazeera, usam extensamente as redes sociais. A informação circula e não há maneira de a travar. Nem sequer na Líbia. É como água a escorrer entre os dedos.

Quando o Muro de Berlim caiu, muitas pessoas reagiram com alarme: o colapso do bloco socialista era visto como catástrofe iminente e daria lugar a uma guerra nuclear (no mínimo). Os intelectuais formatados na Guerra Fria não entendiam o que se estava a passar, que os regimes não podiam suportar a diferença entre o que era dito pelos dirigentes e aquilo que os cidadãos sabiam da realidade. No leste, vivia-se uma mentira diária, um simulacro, com discurso oficial que todos sabiam ser falso.

O mesmo acontece no Médio Oriente. Quando as pessoas já não suportam o que está à sua volta, basta uma faísca para a revolta. Daí o efeito dominó que em Portugal deixa tanta gente perplexa.

 

Na altura, de Stettin no Baltico a Trieste no Adriático, as populações queriam liberdade. Mesmo assim, as revoluções não foram todas iguais e, na Jugoslávia e Cáucaso, houve terríveis guerras. No entanto, a vaga de democratização no leste da Europa deu origem a várias democracias. Não deve haver muitos checos ou húngaros nostálgicos do passado ou que queiram voltar à tutela soviética. A Rússia é um caso distinto, pois o seu regime musculado gere um império, aliás, o único império europeu que sobreviveu à descolonização. Moscovo não terá uma democracia normal enquanto não abdicar de algumas das suas ambições territoriais.

Mas a Europa mudou mesmo, apesar da dureza dos regimes que caíram. 

Na mesma época da vaga de democratizações na Europa do Sul e na Europa de Leste, houve progressos mais ou menos silenciosos em alguns países, sobretudo na América Latina, na África do Sul, Coreia do Sul, Turquia ou Indonésia. Essa vaga de mudanças de regime foi bastante discreta e não envolveu grandes turbulências. E chego finalmente ao ponto: em nenhum destes casos, as transições para a democracia foram vistas como um terrível perigo para o Ocidente, como aconteceu no caso da transição no leste ou como está agora a acontecer com o Médio Oriente.

Desta vez, os temores nacionais terão a ver com a dimensão dos acontecimentos. A região tem petróleo e 350 milhões de pessoas. O Islão é visto como uma ameaça, sobretudo por não haver muitos muçulmanos em Portugal. O que poucos levam em conta é que o mundo muçulmano estava já em profunda mudança, devido à tensão crescente entre as ideias da modernidade e da tradição religiosa. É difícil conciliar estes dois mundos, sobretudo numa civilização marcada pelo sentimento da injustiça histórica e da ameaça aos seus valores.

E, no entanto, estas culturas parecem dispostas a aceitar (a lutar e morrer) por uma ideia ocidental, a democracia. E alguns acham isso perturbador, ficando involuntariamente ao lado dos Kadhafis. Em vez de tentarem compreender a vaga, tentam negar que ela existe ou tentam detê-la.

2 comentários

Comentar post