Mirar o Cairo e ver o Apocalipse
Depois de José Pacheco Pereira, também Vasco Graça Moura se debruça, angustiado, sobre os perigos do fundamentalismo islâmico num texto de pendor apocalíptico em que não há uma só linha de congratulação pela queda de Ben Ali na Tunísia e Hosni Mubarak no Egipto - ditadores que perfaziam 53 anos somados de mandato, com o requinte suplementar, no caso egípcio, de que já estava praticamente assegurada a sucessão para um dos rebentos do cleptocrata, travestindo a república em monarquia, em jeito de regresso aos tempos faraónicos do rei Faruk.
Bom estilista do idioma, Graça Moura compõe o seu texto no DN em jeito de valsa lenta que vai acelerando e crescendo de emoção à medida que os parágrafos se sucedem.
Primeiro parágrafo: «O mundo ocidental deveria olhar com grande apreensão as perturbações consecutivas que ali [Tunísia e Egipto] estão a acontecer e ameaçam alastrar rapidamente aos restantes países islâmicos do Médio Oriente e do Norte de África.»
Segundo parágrafo: «Está na cara que [as coisas] vão correr mal, mesmo muito mal.»
Quarto parágrafo: «O rastilho do fundamentalismo islâmico alastrará imparavelmente pelos caminhos da Al-Qaeda a todo o mundo árabe, ainda por cima com o risco de também acabar por envolver a Turquia.»
Quinto parágrafo: «O Ocidente não está já em condições de se defender, por falta de valores éticos e cívicos que foi dissipando em nome de uma permissividade politicamente correcta e desastrosa.»
Custa-me entender três coisas.
Primeira: que um democrata não se congratule calorosamente, em termos inequívocos, com a queda de um ditador.
Segunda: que seja sempre invocado o exemplo do Irão de 1979 como uma espécie de garantia prévia de que os movimentos pró-democracia no mundo islâmico estão condenados a ser mal sucedidos. Que eu saiba, a Indonésia também é um país islâmico - é aliás o maior país islâmico do globo - e transitou com sucesso da ditadura para a democracia no final da década de 90.
Terceira e última: que não se perceba que todos estes persistentes receios são afinal a prova mais evidente de que as ditaduras foram incapazes de travar o passo à ameaça fundamentalista. E como poderiam ter sido, designadamente no Egipto, sob o mando despótico e decrépito de Mubarak?
Lamento, sinceramente, que Graça Moura não tivesse espaço, tempo ou paciência para acrescentar um parágrafo ao seu texto. Um parágrafo em que aludisse à corrupção, à pobreza, às desigualdades, à repressão, às eleições fraudulentas, à censura aos meios de informação, à falta de liberdades fundamentais no Egipto. Por um simples motivo: este quadro confrangedor é que constitui o maior caldo de cultura do extremismo islâmico. Não perceber isto é não perceber o fundamental.