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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

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O caso Wikileaks

As discussões portuguesas que tenho lido sobre o caso Wikileaks estão geralmente centradas na questão da liberdade de expressão e da liberdade de circulação de informação. Há excepções menos redutoras, como neste debate bem interessante.

Nas sociedades ocidentais existe ampla liberdade de expressão e de circulação de informação. Só por isso o caso Wikileaks é possível. Um país autoritário, como a China, pode impedir a difusão de notícias sobre o prémio nobel da paz. Barack Obama não pode fazer o mesmo em relação aos telegramas diplomáticos americanos. 

 

O que está em causa, aqui, é um roubo de segredos. A partir do momento em que foram roubados, estes segredos passaram a ser públicos, inúteis para o governo americano, deixaram de ser segredo. Ou seja, não fará qualquer sentido restringir a sua divulgação. Os EUA dizem que vão tentar todos os meios legais para silenciar a Wikileaks e os observadores portugueses espantam-se, dizendo que isto é horrível, quando me parece natural, desde que se usem meios legais.

A Wikileaks diz que está sob ataque e toda a gente acredita, apesar da informação continuar a fluir. A Time publicou uma capa de Julian Assange com a boca tapada pela bandeira americana. A imagem é sugestiva, mas provavelmente transmite uma ideia falsa. Damos por facto a alegação de Assange e achamos que os EUA mentem, ao dizerem que querem resolver a questão nos tribunais. E há quem diga que a acusação de violação resulta da manipulação da justiça sueca, mas ninguém se lembra da ordem inversa: e se Assange antecipou a divulgação dos telegramas para se livrar da acusação de violação?

É um tribunal sueco; a Suécia é um Estado de Direito; até prova em contrário, o suspeito é inocente; há duas queixosas. Onde está o problema?

 

Lentamente, começa a ser evidente que Wikileaks é política pura e dura. A diplomacia americana sofreu um golpe da dimensão do ciclone Katrina, que a deixará a coxear por muitos anos. Na tomada de decisões, os diplomatas passam à irrelevância e os espiões serão a partir de agora mais ouvidos.

A transparência perdeu.

 

Uma das críticas que li e ouvi era de jornalistas que se espantavam muito por outros jornalistas (como é o meu caso) adiantarem algumas dúvidas sobre a Wikileaks. Afinal, as intenções, financiamento, origem e métodos desta organização não são totalmente conhecidos. Quero dizer: a Wikileaks publicou os segredos de outros mas não é transparente. Ora, não tendo isto a ver com liberdade de informação (visto que a informação circula) não vejo razão para pôr em causa a honestidade intelectual de jornalistas que façam perguntas, por exemplo, sobre a forma como segredos tão sensíveis foram obtidos. Quem nos garante que haja 250 mil telegramas e como é possível que um simples soldado tenha acesso a informação tão sensível? A profissão de jornalista tem a ver com um cepticismo militante que nos obriga a não engolir com demasiada facilidade certas explicações.

Em muitas discussões, Assange é uma espécie de herói da liberdade. Mas os verdadeiros heróis da liberdade contemporâneos são Aung San Suu Kyi ou Liu XiaoBo, cuja luta pela liberdade de expressão e circulação de informação não tem excitado muito os espíritos. Repito: estes dois casos são de liberdade, e bastante desesperante, enquanto que Wikileaks pertence à política, o que gera sempre mais paixões.

 

Há duas semanas realizou-se em Lisboa uma cimeira da NATO que reviu a estratégia da organização. Um dos pontos discutidos tinha a ver com as ameaças, nomeadamente os ciberataques. Casos como este serão no futuro considerados como tal e resolvidos com dureza. Quando escrevi aqui que o caso Wikileaks poderá reduzir as liberdades na internet e não aumentá-las, fui ridicularizado, como se estivesse a dizer uma estupidez. Um membro da NATO a quem sejam roubados segredos vitais pode no futuro invocar o artigo quinto do tratado e travar qualquer divulgação pela internet nos países da aliança e nos parceiros externos. A divulgação num outro país qualquer será um acto militar hostil.

 

 

Acrescento que este post não visa convencer ninguém. Leio com grande interesse os telegramas divulgados pela Wikileaks e tenho aprendido muito com eles. Acho, no entanto, que este caso merece uma reflexão séria e, acima de tudo, uma análise mais política. A ilustração sublinha as minhas dúvidas: é extraída do vídeo de um ataque de helicóptero no Iraque, no qual morreram vários civis. Um momento brutal e cruel, que nos fez perceber melhor a realidade.

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