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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

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"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

É a vida...

Sempre tive alguma pena de não ter nenhum talento extraordinário. Em criança observava com uma pontada de inveja os coleguinhas de escola, alguns pequenos prodígios ao piano, na ginástica, na matemática, na beleza, no que fosse. Mas eu, nunca tendo sido propriamente horrorosa também não era nenhuma estampa, apesar de nunca ter sido propriamente má aluna, também nunca fui especialmente boa – por exemplo, nunca na vida tive um 20 - e sempre fui consistentemente uma verdadeira nódoa em toda e qualquer actividade que envolvesse mais coordenação motora que levar os talheres à boca.

Contudo, a certa altura descobri que, mesmo não sendo um prodígio, tinha uma característica mais desenvolvida que a média – não, não era o rabo – era a memória.
De facto sempre tive uma memória notável e que talvez seja a responsável pelas minhas consistentes notas medianas, já que o estudo não era certamente.
Mas como o cérebro é estranho e a memória selectiva, a minha dava-me mais para letras de músicas (que eu decorava à segunda vez que ouvia e, se fosse muito repetitiva, podia ser logo à primeira), números de telefone e principalmente, nomes e caras. Era de tal forma eficiente como fisionomista que a minha mãe recorria a mim como se à agenda: “lembras-te daquela loira meio parva, casada com aquele colega do pai do nariz estranho?” E logo eu disparava nome e, se fosse pessoa que eu conhecesse bem, número de telefone. Bastava-me ver uma cara uma vez e nunca mais me esquecia nem da identificação nem da origem. Da mesma forma, sabia os nomes de todos os livros que lia e filmes que via, dos autores e dos actores, enfim, era uma espécie de catálogo.
Agora, não sei se é das gravidezes, da falta de sono, das noitadas, do excesso de trabalho, do desgaste da idade ou de tudo isto junto, mas sinto uma intensa e rápida decrepitude a tomar posse das minhas faculdades.
Acontece-me quase todos os dias encontrar pessoas que me cumprimentam e até conversam animadamente, que me perguntam pelos meus irmãos, às vezes pelos meus pais ou filhos, e que eu não faço a mais leve ideia de quem sejam. Como sou simpática por natureza, sinto vergonha de admitir perante alguém que se me dirige de forma tão calorosa, que estou completamente a zeros, por isso disfarço e tento perceber pelo contexto da conversa se chego lá. O que na maioria das vezes não acontece, admito, e acabo a fazer figura de parva.
Por ter vivido a vida toda na mesma terra é natural que eu conheça muita gente, que de vez em quando encontro aqui ou ali e com quem dou dois dedos de conversa. Estas falhas já são tão comuns que no final há sempre alguém que pergunta – sabias quem era? Infelizmente cada vez mais respondo que não.

Ora, se no que diz respeito a fisionomias até consigo disfarçar mais ou menos, quando toca à parte dos nomes de pessoas, livros ou filmes, actores, autores e afins, então o caso é muito mais grave. E ridiculo.

Mas pelo menos ultimamente tenho tido algumas conversas que, apesar de espelharem bem o nosso estado, me fizeram sentir melhor - reconforta-me de saber que estamos todos na mesma. É uma geração esclerosada, a nossa.

 

São diálogos surreais, do género deste:

 

- Já viste o ... pá, o novo filme do.... daquele, caraças, que anda com aquela que fazia o Sexo e a Cidade, a loira....
- Ah, o..... , eles não andam, são casados, sim, o..... pá, como é que ele se chama, sei perfeitamente quem é, entrava naquele filme em que fazia de mau aluno .... Não interessa, já estou a ver. Não sabia que tinha um filme novo. Vale a pena, é?
- Vale, é giro. É passado na Austria, num dos sitios onde ficamos de uma das vezes que estivemos há uns quatro ou cinco anos, lembras-te? Tinha um nome estranho.
- Nomes estranhos têm todos os sitios onde estivemos na Austria. Foi no ano em que fomos nós e mais quem?
- Foi no ano daquelas duas doidas, primas do .....


E assim por diante.

 

De vez em quando as crianças assistem e gozam. Que estamos velhos, gagás, enfim. E nessas alturas rio para comigo e só consigo pensar naquela história do português que está na paragem do autocarro e vê passar um tipo num Ferrari. Em vez de sonhar também ele um dia ter um carrão daqueles, o único pensamento que consegue ter é: um dia também tu hás-de andar de autocarro!

É que é mesmo isso! 

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