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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

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A caminho da República (19)

10 (25 de Setembro de 1910)

Duas notícias revelavam um pouco da situação social do País. Um dos títulos: “Crianças desmoralizadas e ao abandono” dizia respeito a uma queixa enviada ao governador civil. Ali se conta que “vagueiam pela cidade [de Lisboa], principalmente nas ruas da baixa, grupos de crianças”, com idades entre 7 e 12 anos, “que se entregam à pilhagem e a actos de devassidão”. O texto vai por ali fora, criticando estes jovens pela linguagem ordinária, pequenos roubos e discussões. “Como pela pouca idade que têm são irresponsáveis, a polícia, não podendo fazer outra coisa, chama os pais e entrega-as”.

No Barreiro ocorrera um pequeno episódio tendo como pano de fundo a construção do caminho de ferro do sul e sudeste, que atraía muitos trabalhadores, em concorrência pelas oportunidades. Armando dos Santos [cujo nome a meio da notícia muda para Amaro] viera de Évora. Trabalhou na descarga e foi despedido, pois havia mais procura do que oferta. Às tantas encontrou um tal Baptista, responsável pelos descarregadores, e pediu-lhe trabalho. O outro respondeu com uma violenta bofetada. Armando (ou Amaro) pegou num canivete e virou-se para Baptista, mas 10 homens da companhia deste sovaram o trabalhador de Évora, de forma a que “batessem com a cabeça na parede, onde deixou relevantes vestígios daquela enorme brutalidade”.

 

9 (26 de Setembro de 1910)

O DN referia, na página 2, em baixo, os ecos de uma entrevista que dias antes tinha sido publicada pelo jornal britânico Daily Mail. O entrevistado era Sebastião Magalhães Lima, apresentado como “ilustre democrata e jornalista”. O sugestivo título, “O Dilema do Rei Manuel” e, a sub-epígrafe “é inevitável a queda da monarquia” dizem quase tudo.

Magalhães Lima é uma figura central da história da República. Antigo fundador do jornal O Século (rival do DN), grão-mestre da maçonaria, viria a redigir a Constituição de 1911.

O correspondente em Paris do Daily Mail, depois de “consagrar algumas referências amáveis ao dr. Magalhães Lima”, escreve sobre a situação interna em Portugal, citando o "ilustre" republicano. Segundo Lima, a “oposição monárquica compõe-se de conservadores, reaccionários e clericais” que “pretendem arrastar o exército para uma repressão violenta, de maneira a poderem cercear todas as liberdades públicas”. Na opinião do dirigente republicano, “o exército será incapaz de atraiçoar a liberdade e chacinar o povo e colocar-se ao lado dos opressores”.

Segundo Magalhães Lima, citado pelo DN com base na entrevista ao Daily Mail, “a queda da monarquia é inevitável e o advento da república é uma questão de tempo. O resultado das últimas eleições equivale a uma grande vitória alcançada pelo partido republicano português”.

Na realidade, este partido vencera apenas em Lisboa. A 5 de Outubro, o exército estaria sobretudo do lado da monarquia e a revolução quase fracassou.

 

8 (27 de Setembro de 1910)

O DN contara, em várias edições anteriores, os pormenores da grande organização do centenário da Guerra Peninsular. Nesta terça-feira, 27 de Setembro, realizaram-se as cerimónias oficiais dos cem anos da Batalha do Buçaco, em que se enfrentaram tropas anglo-portuguesas, comandadas por lorde Wellington e o exército francês comandado pelo marechal Masséna.

Nas comemorações dos cem anos havia mais público do que houvera combatentes na famosa batalha. Calculava-se uma multidão de 150 mil pessoas (tinham combatido 25 mil ingleses e 25 mil portugueses contra 65 mil franceses).

A reportagem do DN é muito bem escrita: “Foi realmente assombrosa a concorrência de público que ontem, desde as primeiras horas da manhã, ainda iluminada por um sol desanuviado e limpo, mas ardendo, invadiu toda a extensa zona compreendida entre a estação do Luso e a alta planície que cerca o cume da serra do Buçaco”.

Mais à frente, este curioso fragmento sobre o “(...) extenso formigueiro, que se arrastava num ondular cadenciado, ao som dos descentes (?) das cachopas, na sua maioria formosas, sadias e de belo aspecto, enlevo dos seus conversados, e alvos em que naturalmente se fixavam os olhos da soldadesca gulosa e dos paisanos... da cidade”.

Depois, houve missa, benção da bandeira, simulações de combates, na presença de el-rei.

 

7 (28 de Setembro de 1910)

O clima de instabilidade e nervosismo percebe-se em pequenas notícias do DN, como uma brevíssima com referência ao artigo de Magalhães Lima publicado no The Nation, de Londres, mas sem comentários, outra com título "O Caso da rua Garrett" e apenas cinco linhas, onde se conta como o objecto metálico encontrado à porta da redacção do jornal Portugal não tinha, afinal, explosivos.

O editorial dedica-se à questão do crédito agrícola, que este jornal gostaria que fosse criado em Portugal. Um bocadinho de ironia sobre as resistências governamentais: “O governo apresenta-se com aspectos tão democráticos e liberais copiando, para suas iniciativas, exemplos de nações de ideias tão avançadas, como agora se diz, que logicamente deve também, no campo económico buscar ali ensinamento e lição”.

O autor queria o modelo da República Francesa, no que ao crédito agrícola dizia respeito, e explica as vantagens ali obtidas. Depois, um lamento tão frequente nos intelectuais portugueses de todos os tempos: “Diz-se contra este projecto que a nossa gente o não saberá aproveitar pela sua péssima educação viciada pela politiquice ao alto e pela ignorância ao baixo”.

O crédito agrícola poderia salvar a situação criada pela “crise vinícola intensíssima”, defendeu ainda o autor do editorial.

  

6 (29 de Setembro de 1910)

A notícia do dia foi a da greve geral dos corticeiros, que mudou a rotina entre Cabo Ruivo e Xabregas, onde mais de 4 mil trabalhadores do sector, além de familiares e amigos, encheram as ruas e paralisaram a laboração das fábricas.

“O aspecto daquela gente denunciava um mal estar”, escrevia o repórter do DN, numa história cheia de fotografias do acontecimento. A manifestação, que era na realidade apenas uma ocupação tranquila da rua, visava denunciar a exportação de cortiça em estado bruto, “que constitui o terror da enorme classe corticeira”, dependente da finalização de outros produtos da cortiça.

O enviado do DN fala com um operário “de faces encovadas, denunciando muitos dias de fome”. O homem é citado num longo parágrafo, com algumas palavras que talvez nem sejam as suas: “Já não bastava levarem a cortiça em pranchas; e para cavarem mais fundo a nossa ruína, até a cortiça em bruto nos querem levar, deixando uma tão grande classe mergulhando nos horrores da fome; não, isto não pode ser; isto tem de ter agora um limite. Lutamos única e simplesmente pelo pão dos nossos filhos e estamos dispostos a morrer por eles”.

Os protestos parece terem funcionado, pois o presidente do conselho (primeiro-ministro) Teixeira de Sousa prometeu que “sustaria a exportação de cortiça do país até abrir o parlamento".

 

Crónicas baseadas nas edições do Diário de Notícias dos dias indicados

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