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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

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A caminho da República (16)

25 (10 de Setembro de 1910)
Esta história parece tirada de um filme de Chaplin, mas aconteceu de facto a 10 de Setembro, num sábado muito quente em que os lisboetas procuraram a frescura do Campo Grande. Em vez da frescura, enfrentaram os calores de uma tourada e o pânico de “uma balbúrdia medonha”. Tudo começara nessa madrugada, com o desembarque de 397 bois argentinos, levados do porto para o mercado de gado, no Campo Grande, por campinos e pastores que terão perdido o controlo de pelo menos um touro e de algumas vacas. O gado enfureceu-se e investiu contra os cidadãos que passeavam tranquilamente no jardim. A descrição, muito realista, fala de pessoas “volteadas” pelos animais, perseguidas e “arremessadas pelo ar”. Um desgraçado idoso, sentado num banco, é apanhado em cheio pelo “anafado boi argentino e fica muito maltratado, mais morto do que vivo”. Outro cidadão tenta fazer uma manobras com o casaco, mas é também atropelado. Um polícia tentou “socorrer o improvisado bandarilheiro” mas foi ele próprio apanhado por uma vaca mansa, que “volteou o pobre guarda, dando-lhe algumas marradas e deixando-o bastante magoado”.
A comoção durou mais de meia hora, deixando um ferido em estado muito grave e vários ligeiros.


24 (11 de Setembro de 1910)
O último dia da Feira da Luz, num domingo, garantiu uma “concorrência extraordinária” nesta feira popular, com muita alegria, carteiristas e até uma cena de pancadaria que deixou o agressor preso e o agredido em fuga. “Desde manhã que os carros eléctricos, e muito principalmente os comboios, porque o preço é mais convidativo, começaram transportando para Sete Rios centenas e centenas de pessoas que dali seguiam para a Luz em carros do Jorge [que não sei o que fosse, mas talvez algum transporte] e outros, no meio da maior animação, ao som das guitarras e canções populares”. O movimento da multidão ocupava todo o largo, repleto de barracas de comida e bebida, quinquilharia, teatros.  Foi um evento pacífico e alegre, tendo o DN registado poucas ocorrências, tirando uns casos de roubo.
António Braz, morador na rua D. Estefânia, confessou à polícia que após uma discussão com um desconhecido, lhe vibrou algumas bengaladas, pondo-se o agredido em fuga e ficando detido o agressor, após uma breve balbúrdia. Outro Braz, mas de nome Romão Augusto, queixou-se de ter recebido de um desconhecido alguns socos, por motivo não apurado, mas talvez sério.


23 (12 de Setembro de 1910)
O rei D. Manuel foi a Mafra caçar na Tapada e, segundo o DN, teve uma recepção de grande entusiasmo naquela localidade. Eis a descrição: “Foi imponentíssima a manifestação ontem feita a el-rei pelos habitantes desta vila à qual se associaram, em indescritível entusiasmo, em número incalculável de pessoas de todas as classes sociais, imprimindo nessa manifestação uma nota cheia de alegria, um enorme grupo de senhoras que acompanharam a marcha 'aux flambeaux' desde o seu início na câmara municipal até ao fim dela”.
O repórter fala em “delírio” e “manifestação sempre quente”, Seguiu-se a caçada, onde foram mortos “alguns gamos e muitos coelhos”.
Na mesma página noticiava-se que o paquete austríaco Clara tinha desaparecido entre Orão e Lisboa. Deveria seguir depois para Filadélfia, mas não aparecera. Levava a bordo 50 passageiros e uma carga valiosa. “A única esperança que resta”, escrevia o DN, é que “se encontre neste momento navegando directamente para Filadélfia”.
E veja-se o gosto pelos detalhes, nesta notícia: “Quando ontem à noite o senhor general Sepúlveda descia de um carro eléctrico ao Largo do Carmo, deu uma queda, de que lhe resultou um pequeno ferimento na cabeça. Foi receber os devidos socorros ao posto da Misericórdia, não inspirando o seu estado, felizmente, sérios cuidados”.

 

22 (13 de Setembro de 1910)
O paquete austríaco Clara tinha seguido, não para Filadélfia, mas para Nova Iorque, onde já chegara. Evitou-se desta forma a trágica notícia de um naufrágio e temos um feliz desmentido. Apesar de tudo, o DN insistia num título sensacionalista e sem justificação: “Drama no Mar”.
Bastante interessante é a estatística obituária publicada neste jornal e que dizia respeito à semana entre 31 de Julho e 6 de Agosto, na qual se afirmava que tinham falecido 192 pessoas em Lisboa. A febre tifóide matara uma e a varíola 10; a tuberculose dos pulmões fizera 25 vítimas. Mais cruel é a informação de que 32 crianças até aos 2 anos tinham morrido de diarreia e gastroenterite, o que diz muito sobre as condições de higiene e a qualidade da água. Havia outras doenças com menos mortos, como tumores, bronquites debilidade congénita e senil, difteria, gripe e tosse convulsa. E ainda 9 mortes violentas, à excepção de suicídios, cujos valores estranhamente não constam. As autoridades atribuíam 11 mortos a doenças cardíacas e 10 a hemorragias cerebrais.

Se esta era uma semana típica, então morriam por ano, em Lisboa, cerca de 10 mil pessoas, o que parece muito para uma população de 450 mil.
Mesmo por baixo desta estatística, era noticiado que o rei D. Manuel II deixara Mafra, após uma despedida “muito cordial e respeitosa”. Entre as manifestações de simpatia, destaque para a Real Filarmónica, que tocou durante o jantar, incluindo a rapsódia “Comboio”, da autoria do sr. Germano Augusto Santos.

 

21 (14 de Setembro de 1910)
Já aqui foi mencionada a tragédia de três “globe-trotters” portugueses que se afogaram num rio da Turquia, quando se tentavam refrescar. O caso passou-se perto de Salónica, actualmente na Grécia. Os aventureiros portugueses vinham da Albânia e decidiram nadar na ribeira de Konki, onde as águas são perigosas. Um polícia ainda os avisou para que não se lançassem à água, mas os três desapareceram depressa. Dois afogaram-se e os corpos não foram recuperados. Outro foi salvo pelo polícia (turco?), que se atirou à água. A informação citada veio do cônsul português em Salónica e mantinha-se a confusão sobre os nomes das vítimas e do sobrevivente.
História com final mais feliz é a da prisão em “fragrante delito” do “aspirante”, o “famigerado gatuno” e “intrujão” Cristiano Lourenço. “Vadio”, que vivia de “expedientes sujos”, o aspirante fazia-se passar por repórter do Diário de Notícias, o que certamente justifica a enorme quantidade de adjectivos que consta desta notícia. O truque era indagar pelos hotéis se tinha chegado alguma figura destacada. Depois, consistia em tirar o retrato e sacar algumas informações biográficas, bem como algum dinheiro para as despesas da notícia que deveria sair neste jornal sobre tão importante visita. “O aspirante é um indivíduo novo, magro, um pouco trigueiro, de bigode pouco farto e usa lunetas”. Não progrediu no jornalismo.

 

Crónicas baseadas nas edições do Diário de Notícias dos dias indicados.

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