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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

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O automóvel desgovernado

É peculiar que a terceira República queira comemorar a revolução de 1910, reclamando-se da sua herança. Naquela altura, o poder foi tomado por uma minoria radicalizada, que criou um regime caracterizado pela intolerância religiosa e pelas promessas não cumpridas sobre igualdade e desenvolvimento. Os republicanos, dominantes nas zonas urbanas, estiveram em conflito permanente com as populações rurais, que desprezavam. Para salvar as colónias, aderiram a uma guerra francamente impopular. O novo regime nunca foi democrático e no seu código genético tinha a instabilidade e a violência política.

 

Na realidade, a terceira república é bem mais parecida com o regime de monarquia constitucional de 3 de Outubro. Tem o mesmo rotativismo partidário, a mesma paralisia. No final da monarquia, havia dois grandes partidos, um reformista, o outro conservador, mas balcanizaram-se em facções irreconciliáveis e as lutas internas, quase sempre de carácter pessoal, impediram reformas mínimas que poderiam ter reduzido o descontentamento da burguesia urbana. Em Agosto de 1910, nas eleições legislativas, os republicanos elegeram apenas 14 deputados em 150. Em muitos círculos, a sua votação era mínima. A melhor votação, em Lisboa, foi inferior à soma dos partidos monárquicos. Mas houve um tal crescimento, que os republicanos comemoraram a vitória e prepararam um golpe.

O rei tinha poderes extensos (como tem o actual presidente no nosso absurdo semi-presidencialismo) e era bastante popular, mas não interveio. O país estava endividado, havia pressão para reformas urgentes, mas nunca houve coragem política para as fazer. Era preciso renovar os partidos, combater a corrupção, facilitar a ascensão social, resolver o problema da dívida, ter uma política colonial mais humana, alargar a instrução pública, minorar o descontentamento dos operários, sobretudo tirar alguns privilégios à igreja católica, no ensino, nos registos e no poder económico. Os diagnósticos estavam feitos, mas as reformas nunca surgiram.

 

A situação actual é diferente, bem sei, mas há semelhanças. Também estamos endividados, com os diagnósticos feitos, num sistema partidário paralisado. A classe política não se renova e se alguém apresenta uma proposta de reforma, imediatamente surge um exército de analistas e comentadores que grita aqui d'el-rei. Impossível fazer, dizem. Qualquer pessoa lúcida sabe que o actual modelo de Estado providência é insustentável e terá de ser reformado, mas os comentadores sérios, aqueles que vão à televisão, dizem logo que é muito necessário mantê-lo como está e, portanto, inevitável aumentar impostos. Não explicam qual dos impostos se aumenta (será o IVA, para perdermos competitividade, o IRS para as pessoas fugirem ou o IRC para aumentar o desemprego?). Como se o balão pudesse crescer indefinidamente.

Tal como aconteceu em 1910, o país acelera, como um automóvel desgovernado, na direcção de uma parede, só não se sabe quando vai bater.

 

Claro que não há radicais para tomar o poder e existem partidos de protesto para deixar sair algum vapor. A Europa impediria qualquer loucura anti-democrática. E os militares, hoje, têm bom senso. Mas quanto tempo é que esta situação se pode manter? E como acabar com a paralisia nos dois partidos de governo?

Do PS não surgirá qualquer solução, pelo menos até aparecer uma nova geração de dirigentes, o que levará anos; e o PSD continua fraccionado, com a sua ala conservadora e católica incapaz de trabalhar com a actual liderança. Esse partido está embrulhado em discussões bizantinas sobre a Constituição, em vez de mostrar aquilo que pode fazer para resolver os problemas do País.

Como se sai da armadilha da dívida? E que fazer para criar empregos? Como é que se reforma o Estado providência? É preciso mexer na segurança social, na lei das rendas; é urgente tirar as intrigas políticas da justiça e dos negócios; é necessário melhorar a qualidade da educação. O país não precisa da regionalização nem de aumentar o patamar de tachos, precisa é de combater os jobs for the boys, que foi onde o PS fracassou.

Mas como é que isto se faz? É preciso que um dos dois partidos o diga sem ambiguidades, com clareza, em vez de imitar os monárquicos de há cem anos, que se sentaram tranquilamente no automóvel desgovernado, a beber chá e a discutir o futuro. E não é possível repetir aquilo que D. Manuel fez em 1910, passeando a sua popularidade pelas terrinhas de Portugal, evitando a todo o custo uma ruptura que podia ter salvo o regime.

  

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