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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

Piada FNAC

- Diz aqui que o novo livro do José Rodrigues dos Santos foi revisto por um dos primeiros operacionais da Al-Qaeda.

- Isso não quer dizer nada. O livro da Maddy foi revisto por um ex-operacional da Judite...

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Ninguém vê a maratona completa, querido’ 
 

‘Ninguém vê a maratona completa, mas toda a gente acompanha a final dos 100 metros, querida’

 

Ela oferece-me as costas amuadas. O quarto está às escuras, os contornos do corpo são traçados por uma greta de claridade que atravessa a frincha da porta. As costas, os refegos de carne por debaixo dos sovacos, mas também os vértices das mobílias, sem juntas, parafusos a descoberto, high quality, candeeiros em forma fálica, de material tilintante, quase nenhum vestígio de interruptor, verdadeiros quebra-cabeças mobiliários, a anos-luz dos móveis fast food daquela marca sueca. A frase é dela. O quarto está às escuras porque o nosso João Maria nasceu há três anos e seis meses.

‘Tem de ter paciência nesta fase, a mulher tende a esconder o corpo durante a depressão pós-parto’, o médico solene. Ela na sala de espera de mãos na cara. 

Festejámos os três anos do João Maria, os dois, com uma vela mágica azul que soprámos até à exaustão perante o desinteresse do aniversariante. Oiço-lhe a respiração pelo intercomunicador sobre a mesinha de cabeceira, o aparelho range quando ele se mexe. Eu acordo. Tem um respirar afogueado, uma ameaça constante de choro.

 

‘Vais onde?’, ainda de costas amuadas. Abro e fecho a porta com um gesto rápido. A luz quase não entra: ‘a mulher tende a esconder o corpo’.

 

Quanto pagamos de condomínio? Uma fortuna. Vigilância 24 horas, três lugares de garagem, o relvado da entrada aparado, manutenção, dois baloiços para o João Maria, circuito de bicicleta quando for grandinho. Vamos ter um segundo filho?

 

‘Pagamos uma fortuna de condomínio e temos putas à porta’, diz ela.

 

As putas não se ralam com o que pagamos de condomínio. Vejo-as da janela, a ganir por um cigarro fumado para a frincha aberta.

 

‘Concordámos que não fumavas em casa’

 

Ela de costas amuadas. Eu à janela. Estacionam em cima do passeio os carros desportivos – ‘putas porque querem’ – onde a empregada interna caminha devagar, empurrando o João Maria, nos domingos antes do almoço. O João Maria que tem medo de largar a mão, nunca caminha sozinho. Ela na terapeuta, na estética, no brunch.

 

As putas não falam, vejo-as pela janela, passeiam-se para desempenar os saltos, não são velhas, nem novas, não sei que idades têm por debaixo da sombra e do blush, e usam roupa mínima preta, acetinada, que faísca com o bater dos faróis. O cabelo volumoso, bem tratado, as unhas feitas, não lhes encontramos uma malha na meia e há aquelas que engancham no braço malas caras que ofereço no Natal à esposa e à sogra. Os carros abrandam, as putas mantêm o passo lento, um desinteresse fingido, não negoceiam o preço, rodam o corpo, expõem as mãos abertas em gestos repetidos: cinco euros por cinco dedos espetados à luz do candeeiro, uma e outra vez. Da janela não percebo. A puta está de costas, mas o do carro achou o negócio razoável. Ri-se, destranca a porta - tenho um Mercedes com aquele no parqueamento do condomínio, o modelo mais recente com a traseira rebaixada – ela não entra sem ver o dinheiro.

 

Rio-me e penso: ‘um dia as putas têm ATM’

 

Ganham mais numa noite, na certa, do que a empregada interna. Deve dar para pagar o condomínio, os três lugares de garagem, o relvado aparado.

Quando o João Maria range no intercomunicador, soluça e larga um choro birrento sem lágrimas, abandono a janela. Passo pelo espelho da entrada, arregalo os olhos, tacteio os papos distendidos, arreganho os dentes e testo o hálito, descubro mais cabelos brancos, quando o cabelo é cada vez menos.

 

‘Amigo, pareces um fugitivo, mas que se lixe. As putas querem lá saber’

 

 

 

Chamo o elevador para o oitavo andar. As calças do pijama sobram-me e rojam caídas sobre os chinelos, uns que levei do quarto de um Hilton da Europa. Ajusto mais o nó do roupão. Aguardo. As portas do elevador abrem-se e o vizinho do décimo andar com um labrador ensonado pela trela.

 

 

‘Vai descer?’, pergunto.

 

 

 

‘Que remédio. A cadela tem problemas de incontinência e a mulher virou-me as costas amuadas’, também de roupão.

 

 

 

 

Cá em baixo a puta espera-me. Não sei se é nova ou velha e pouco lhe percebo a beleza por debaixo do rímel e do blush e com o faiscar da roupa à passagem dos carros. Aproxima-se, encosta-me ao desportivo, que estacionou em cima do passeio, e apalpa-me a tesão entre a roupa. Pouco duro.

 

 

 

‘Não te preocupes. Ninguém vê a maratona completa, mas toda a gente acompanha a final dos 100 metros, querido’, diz e passa-me um cigarro aceso.

 

 

No oitavo andar do meu prédio, um homem observa, com o João Maria ao colo – um choro birrento, daquele sem lágrimas – está a ganir, aposto, por um cigarro fumado para a frincha da janela. 
 

 

Publicado na revista 'Nós, Tarados' do jornal 'i'

Um Trinta e Um pouco politicamente incorrecto...

 

E lá se foi o Trinta e Um. Cavaco fez o discurso politicamente correcto do "estadista", procurando fugir retoricamente das estreitezas tecnocráticas. Alegre, citando Guerra Junqueiro contra os jacobinos, quis ser o "político"  em ritmo poético. Nenhum se sentiu incomodado com a circunstância de tal golpe ter sido contra uma democracia representativa, enredada nas teias de uma decadência partidocrática. Foram dois dos símbolos de um situacionismo rotativista instalado que não conseguiram ser do reviralho politicamente incorrecto. Até o presidente comemorativo é banqueiro pouco anarquista, enreadado na genealogia bem fidalga...

 

Dizem que são comemorações, mas a comemorada é, muitas vezes, esquecida pela literatura de justificação do presente poder instalado. Poucos falam no patriotismo imperial daquele à nacionalismo místico republicano que nos levou ao milagre de Tancos e à Flandres... 

 

Pena também que muitos ex-comunistas reduzam a generosa I República a uma espécie de jacobinismo serôdio, em nome de uma nostalgia de leninismo mal reciclado por certa geração da tradução em calão de certo Maio 68 que nem repara que nos unidimensionaliza a partir do ministerialismo situacionista...

 

Sem Norton de Matos não haveria a actual Angola. Sem Álvaro de Castro não se escreveria hoje Moçambique. Os velhos combatentes de Naulila e de La Lys, esses avós que serviram, são de todos...

 

A primeira República também é o saudosismo de Teixeira de Pascoaes, o criacionismo de Leonardo, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, para não falarmos de Álvaro Ribeiro e da Filosofia Portuguesa...

 

Mataram o rei (1908), mas também mataram o presidente Sidónio (1918), o chefe do governo António Granjo (1921) e o fundador da própria República, Machado Santos (1921). Nós, os respectivos bisnetos e tetranetos, temos o dever de respeitar tais mártires e heróis, não os instrumentalizando retroactivamente, para uso de governos e candidaturas presidenciais!

 

O essencial do legado da Primeira República chama-se patriotismo. Não pode haver republicano ou monárquico que dele não comungue! E até da geraçao do 31  do Janeiro de 1891 nos podemos orgulhar. Sobretudo, o rasgo criativo de ideias lançado por Basílio Teles e Sampaio Bruno, tão menosprezados pelos situacionismo do partido-sistema a partir de 1911... Valia mais unir o que anda disperso, fazendo com que a armilar abrace o verde-rubro e o azul-e-branco!

Emoções básicas (4)

Ocidente, Oriente
O suplemento literário do ABC deste sábado incluía uma notável entrevista a Claudio Magris. A certo ponto, quando mencionava Italo Svevo, Magris identificou uma intuição “formidável” na obra deste escritor seu compatriota. Cito: “Enquanto que no passado o homem corria o risco de não ser feliz, para o homem moderno o problema agrava-se. Agora, corre o risco de não ser capaz de desejar a felicidade. Quer dizer, já não se trata de não ser amado, mas de algo mais trágico: não ser capaz de amar”.

 

A frase parece dizer muito sobre o mundo contemporâneo e a sua frieza e falta de bondade. A civilização ocidental foi capaz de grandes realizações. Não apenas na engenharia ou medicina, em vidas salvas, longevidade, o conforto de um rei medieval ao alcance de qualquer pobre. Há magníficas obras de arte na China e na Índia, mas a complexidade e profundidade da música ocidental, da sua pintura ou literatura são insuperáveis. Existe agora a moda de relativizar e dizer mal; em certas universidades americanas o ensino da história da Europa tem de ser contrabalançado com igual número de horas para cursos sobre a história de culturas que nos parecem menos influentes. Mas não devíamos esquecer que certas ideias, por exemplo a democracia, foram aperfeiçoadas e exportadas pelo ocidente. Também os direitos humanos, o feminismo, a ajuda humanitária.

 

E, apesar de todas estas realizações, a frase de Magris deve fazer-nos reflectir. Onde falhámos? O homem que corria o risco de não conseguir ser feliz é agora aquele que revela a trágica incapacidade de dar amor aos outros.
Isto aplica-se a quem habita um mundo que parece mover-se com a força motriz do egoísmo e do medo. Um mundo arrogante e cheio de ganância, estúpido na sua vaidade, obcecado pelo poder e pelo sexo. Aplica-se ao microcosmos das relações humanas, a vidas esvaziadas de valores, onde já não cabem os sentimentos. Aos solitários, aos abandonados. Nas outras pessoas, parece que procuramos sobretudo os defeitos ou que nos confirmem as nossas virtudes. A arte transformou-se na glórias das nações, a religião em catedrais magnificentes, a ciência imagina poder controlar o destino. O orgulho é o nosso pecado. Deixámos de olhar para dentro de nós e o nosso deus passou a ser o dinheiro. Esse é o eixo das nossas vidas, a obsessão íntima. E tornámo-nos escravos da ambição.

 

Uma religião oriental, o taoísmo, mal compreendida no ocidente, tem certas ideias semelhantes a partes do cristianismo, sobretudo aquelas mais místicas, que os ocidentais rejeitaram. Não me parece que haja uma boa tradução do Tao Te Ching, um livro muito antigo, mas arrisco-me a citar o que diz sobre o desejo, pois talvez complete a reflexão acima e nos ajude a pensar. Diz Lao Tsé:
Não há maior crime do que ter muitos desejos. Dão maior infortúnio do que ser invejoso”.
E, à frente, uma verdade simples que, para um olhar moderno, quase parece ingénua: “Quando estamos contentes, possuímos todas as coisas do mundo”.
 

Imagem: Aurora, F. W. Murnau (1927)

Já se nota qualquer coisa...

A perspectiva de Frankfurt já mudou qualquer coisa em Constâncio, o nosso Governador.  A perspectiva de trabalhar com o furacão Dr. Weber ou com o insuperável Dr. Draghi já o levaram a conseguir produzir o que mesmo os ouvidos mais cépticos consideram um aviso independente e claro ao Governo. É bom ouvir, após 10 anos de discórdia, a convergência do Banco Central na nossa interpretação de que o défice externo exprime muito do nosso terrível problema de competitividade. Como diz o adágio, mais vale tarde que nunca...

De dedo no gatilho

 

Espero que a Associação Portuguesa do Livre Pensamento, que tanto gosta de promover romagens a cemitérios, se lembre igualmente de evocar a memória desse ilustre "cidadão" que se chamou José Júlio da Costa, o assassino do presidente Sidónio Pais. Ficaria assim completa a galeria de "heróis" da república que a referida associação homenageia hoje por terem demonstrado "coerência e firmeza de convicções", no exercício do seu "legítimo direito à indignação" que os levou a matar o rei D. Carlos e o príncipe real D. Luís Filipe. Quem enaltece dois homicidas - neste caso o Buíça e o outro Costa - é capaz de enaltecer um terceiro. E já agora não se esqueçam também do Lee Harvey Oswald, outro "cidadão" que expressou o seu "livre pensamento" com o dedo no gatilho.

De novo o debate francês

Não tenho muitas ilusões. Adivinho que este post não tenha resposta, mas escrevo na mesma.

Como se fosse esta a questão, ou esta. Palmira Silva em Jugular insiste na ideia de que tudo não passa da maioria islamofóbica a impor códigos de conduta a pessoas religiosas, mas que dispõem de livre arbítrio. Daniel Oliveira, em Arrastão, vai pelo mesmo tipo de argumento, aludindo que isto é diferente da violência doméstica e que se elas querem ser livres, pois bem, lutem por isso. Penso que neste caso, a violência doméstica é também violência pública. Estas mulheres são convencidas a usar as vestimentas opressivas, se necessário à força, e isto passa-se nas fímbrias de uma sociedade ocidental e supostamente democrática, que tem todo o direito de impedir essa violência.

O tom destas posições é de crítica à religião, mas só à católica. No entanto, o maior problema é que Palmira Silva e Daniel Oliveira não falam nos seus posts da vida nos bairros de emigrantes em França. Se conhecessem essa realidade, saberiam da violência exercida sobre as poucas mulheres que não aceitaram a dureza das imposições religiosas ou os códigos de honra das suas famílias. A França é um país laico e democrático, excepto em alguns bairros. 

A questão da proibição de véu integral em edifícios e transportes públicos é uma questão de liberdade, não é mera imposição política ou a lei do mais forte. O Estado tem a obrigação de proteger os fracos. E algumas mulheres islâmicas são oprimidas. O multiculturalismo, neste caso, não é uma resposta aceitável, porque corresponde a um encolher de ombros e a uma capitulação dos nossos valores. Mas há uma certa esquerda que parece cega a este argumento e prefere discutir questões laterais, que são bem mais fáceis. 

Cheque em branco

A entrevista de Pedro Silva Pereira ao Expresso é bastante elucidativa quanto ao que está em causa no ano político de 2010. O braço-direito de José Sócrates, a quem muitos chamam carinhosamente "o clone", diz que o País - para ele, o Governo - precisa de um acordo PS-PSD-CDS a três anos. Um Bloco Central alargado. Segundo o ministro da Presidência, este Governo, eleito há quatro meses sem maioria absoluta, "está a ganhar a batalha da governabilidade". E à custa do quê? À custa de ter eleito o CDS de Paulo Portas como principal interlocutor, ao mesmo tempo que menospreza e faz o que quer do actual PSD. Para as negociações do OE/2010, o partido de Portas levou uma série de propostas palpáveis, concorde-se ou não, e do PSD não se conhece uma ideia, uma exigência, uma prioridade. Terá o OE sido viabilizado com um monumental cheque em branco?

Mas a grande questão é esta: que legitimidade escondida tem Pedro Silva Pereira, membro do núcleo duro do Governo, para propor um acordo com o PSD e o CDS, sabendo-se que os sociais-democratas têm uma liderança a curto-prazo e que vão entrar nos próximos meses em processo eleitoral interno?

Será que, com estas declarações, Silva Pereira está a dizer que o PS e o Governo preferem esta direcção do PSD ou alguém que saia da mesma linha? É bom lembrar que no pós-directas e em pleno congresso, Manuela Ferreira Leite rejeitou liminarmente a solução de um novo Bloco Central, ideia que começava a germinar em algumas mentes próximas da sua cúpula directiva...

Leitura de bolso (4)

J. D. Salinger (1919-2010), na imagem, foi um dos grandes escritores americanos do século XX e acho que este seu romance capturou também os medos da América à beira de ser superpotência, com esta ideia de um corpo adolescente demasiado desajeitado, dos problemas de crescimento que impedem a personagem central de permanecer no seu silêncio.

Este texto tem uns anos. Foi publicado no DN, quando saiu uma nova edição de "Uma Agulha no Palheiro", agora com título "À Espera no Centeio".

 

 

Uma tradução pode envelhecer depressa e isso é mais evidente quando o livro em causa assume, na sua língua original, uma dignidade de obra-prima. Sem dúvida que isto justifica À Espera no Centeio, de J. D. Salinger, anteriormente conhecido em Portugal por Uma Agulha no Palheiro. Confuso? Então, vamos por partes. À Espera no Centeio é a mais recente tradução de the Catcher in the Rye. E a importância da nova tradução é a de revelar o romance em todo o seu esplendor, recusando o pudor da anterior tradução, que envelheceu demasiado, pois evitava a força de algumas expressões e o choque de palavras radicais.
Na riquíssima literatura americana do Século XX há um livro singular, The Catcher in the Rye, que se destaca de todos os outros pela originalidade e, sobretudo, pelo impacto que teve em muitos dos seus leitores. Mark Chapman, o assassino de John Lennon, tentou que o ex-Beatle autografasse uma cópia, poucas horas antes de o matar a sangue-frio. O autor, J. D. Salinger, vive em reclusão e não dá entrevistas. Por vezes, surgem rumores de que morreu, sempre impossíveis de confirmar. Diz-se que tem um baú cheio de livros por publicar e o tesouro, a existir, pode ser o negócio do século no mercado editorial. Estes elementos parecem pertencer a um folclore exterior ao livro, mas é como se The Catcher in the Rye fosse uma espécie de rebelde sem causa, revolução literária e mito. O fascínio que exerce não deixa de ser estranho.
O livro conta a história de três dias na vida de um adolescente de 16 anos, Holden Caulfield, que acabou de ser expulso do seu colégio, Pencey, e decide fazer uma gazeta a duas semanas do Natal, em Nova Iorque, não longe da zona onde mora. O romance é negro e cheio de surpresas e jargão, com uma narrativa simples, na primeira pessoa, com diálogo rápido, linguagem forte, cheia de ritmos interiores e oralidade muito inovadora na época em que foi publicado, 1951.
A personagem principal é um jovem na idade do “armário”, caricatura do mito americano da liberdade individual. Holden tem grande autenticidade, adolescente chocado com aquilo que o rodeia, por exemplo a indiferença, mas também dolorosamente deprimido pela sua incompreensão do mundo. The Catcher in the Rye é sobre a alienação e a imaturidade, uma tragédia com humor, sobre o que se passa na alma de um rapaz em mudança, incapaz de enfrentar o fim da inocência. Há vários momentos-chave e frases que ficaram famosas. Também algumas ideias que nos revelam a inquietação de Holden Caulfield, como nos momentos em que ele se interroga sobre o que acontece aos patos e aos peixes do pequeno lago de Central Park, quando a água congela. Talvez esta seja também uma metáfora involuntária da América, daí a fama instantânea do livro, a sua expulsão de bibliotecas, as críticas politicamente correctas, a devoção dos inadaptados.
Num livro onde reina a linguagem, a força de uma boa tradução faz a diferença. Na nova versão, À Espera no Centeio, o espírito perturbado da personagem torna-se mais nítido, assim como a sua perplexidade e raiva. Apenas dois exemplos:
As dificuldades de tradução começam no título, intraduzível e obscuro. A única referência surge a dois terços do livro, num pequeno episódio aparentemente sem importância, um miúdo que canta uma canção. A ideia está relacionada com crianças que brincam à “apanhada” ou que se escondem no mesmo jogo, “no centeio”. É a ideia central do romance: o ser humano que prolonga a “escondida”, que se protege dos outros, que rejeita um mundo deprimente, que não compreende a morte e tenta adiar o abandono da liberdade concedida pela infância. Uma ideia quase invisível, como se o próprio J. D. Salinger quisesse brincar às escondidas com o leitor.

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