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Aos domingos
Aos domingos, antes da sincronização das nove do Blackberry, a Frederica salta da cama, testa a flexibilidade, toca com os dedos no chão, e sai para a rua em traje de treino com o sumo multivitamina a correr no esófago. Da casa em frente, com uma assoalhada a mais do que a nossa e um salão de jogos na cave, sai a amiga da Frederica em traje de treino e com o batido proteico, substituto alimentar, a chegar ao estômago. Partilham a Volvo, arrancam do Restelo, estacionam no Chiado, e fazem quarenta e cinco minutos de ginástica passiva. A contradição lexical consiste em estar deitado dentro de um fato de astronauta com eléctrodos colados aos glúteos e ler a Vip. Quando a Frederica não troca a rua e estaciona a Volvo em frente a uma casa com uma assoalhada a menos do que a nossa e sem clarabóia na entrada, regressa ao Restelo pela hora em que termino de ler os RSS feeds da Bloomberg e depois da segunda sincronização do Blackberry. A Frederica veste as calças de napa e a parka Burberry, eu visto as calças de veludo cotelê e a parka Burberry, a Frederica muda os pertences da mala Carolina Herrera da ginástica passiva para a Louis Vuitton a tiracolo que comprou nos leilões do Ebay, eu ponho o auricular num bolso e o carregador do PDA no outro, tiramos o Tomás, o Vicente e o Rodrigo da frente do PES (Pro Evolution Soccer) e abotoamos-lhes as parkas da Burberry, damos-lhe as Playstations Portable para a mão, saímos na Volvo ao mesmo tempo que a amiga da Frederica, o marido e os três filhos, passamos pelo quiosque do senhor Amianto para comprar o Expresso e a Vogue, e estacionamos em segunda fila em frente à 'Pastelaria do Restelo - O Careca', ao lado de uma carrinha Volvo de sete lugares.
Todos os automóveis estacionados na rua são carrinhas Volvo compradas por uma pechincha à empresa depois de terminados os leasings, todos têm sete lugares, todos têm três cadeirinhas de criança nos bancos traseiros, todos têm variante 4X4 por causa dos fins-de-semana na Comporta e do caminho de terra batida para o 'Aqui há Peixe', todos têm matriculas recentes - com as letras no meio, todos têm o DVD do Shrek em repeat na televisão de bordo, todos têm estofos em pele, aplicações de madeira escura, cruise-control, sensores de estacionamento traseiros, jantes de liga leve, porta-copos nos bancos traseiros e barras de tejadilho, todos trouxeram o Expresso e a Vogue, o Blackberry sincronizado com a agenda, Vicentes, Rodrigos e Tomás e as Playstations Potable, e todos transportam famílias que moram no Restelo
(fora aqueles que dizem que moram em Belém e vivem no ex-bairro social do Caramão da Ajuda ou os que se gabam de ter comprado casa no Restelo, mas têm um T1 no Bairro da Serafina)
e todos se sentam à mesa, na pastelaria, de forma idêntica à nossa: o Vicente, o Rodrigo e o Tomás junto à Francisca que lhes fala com modos.
‘O menino, hoje, só come um plamier porque já é quase hora do almoço de Domingo e depois perde o apetite
(como se o apetite fosse coisa que se perdesse e nunca mais se tivesse de volta)
E eu dou por mim junto dos outros pais, recorrendo a comportamentos territoriais, na disputa do último tabuleiro de doçaria vária e quando regresso à mesa em equilíbrio trapezista de copos, sumos e pires, engano-me e tendo a confundir o meu Vicente, o meu Rodrigo e o meu Tomás com o Vicente, o Rodrigo e o Tomás da mesa ao lado. Por isso, acontece-me passar horas a planear umas férias à neve em família, entre dentadas no croissant, com uma Francisca ou uma Cláudia e só dar pela troca quando me dizem, envergonhadas, que as casas delas têm sebe de arbustos ou um minigolfe no relvado e reclamam a falta de banheira de hidromassagens.
Esta semana a minha mulher chama-se Carminho e a minha filha mais velha Condeixa, tenho uma moradia com salão de jogos e vista de Tejo, uma empregada ucraniana que diz ‘sinhô doutô’, passo os fins-de-semana prolongados na casa dos meus sogros na Praia Verde e estou em vias de entrar como sócio do escritório de advogados. Já me divorciei duas vezes. Como todas alegaram em tribunal ‘manutenção de estilo de vida’ e pago pensões de alimento avultadas, não voltei à ‘Pastelaria do Restelo - O Careca’. Caso contrario, somaria nova separação e trocava a Volvo por um Opel Corsa, os tacos de golfe do Belas Clube de Campo por o bilhar do Café Central de Benfica, passeava no Colombo ao Domingo e começava a pagar as prestações de um apartamento em Rio de Mouro, que dividiria com a Sandra Cristina e o meu Pedro Tiago.
NA: Texto publicado na Revista Nós, do jornal i, inspirado na grandiosa crónica 'Os meus Domingos' de António Lobo Antunes, sem o génio e numa versão upper class.