Salada de blasfémias
Não defendi o fenómeno Wikileaks e sinto-me à vontade para criticar o post de Helena Matos, em Blasfémias, sob o título "A turminha indignada". A autora não compreende a vergonha pública com o caso News of the World (NoW), atribui essa irritação a uma "turminha", maneira a priori de desvalorizar qualquer argumento contra os métodos de Rupert Murdoch. Acha mal? É menino de uma turminha.
A blogosfera está repleta destes truques retóricos e o post de Helena Matos parece resumir muito bem os saltos de lógica tão em voga entre alguns autores que, pela sua seriedade geral, deviam ter mais cuidado.
As primeiras frases do post são reveladoras. Há "surtos de indignação" que levam a ambientes quase "místicos". Alguém que surja a "manifestar dúvidas sobre tanta certeza é imediatamente tratado como um blasfemo". Uma boa definição de blasfemo, diria, mas parece que a autora não leva demasiado a sério o nome do blogue onde escreve. Isto faz parte do debate: colocar objecções a uma tese dominante dá origem a críticas e se a pessoa desvaloriza à partida essas críticas, então está a praticar aquilo que acusa os outros de fazer, ou seja, a falar com excesso de certezas.
Mas vamos à substância do post. A autora cita um artigo de Wall Street Journal para lançar a sua tese, esquecendo-se de referir que esta publicação faz parte do universo empresarial de Rupert Murdoch. Ali assume-se uma igualdade entre Wikileaks e as escutas ilegais do NoW, mas a ideia não resiste a 30 segundos de análise.
A organização Wikileaks tem carácter anarquista e pretende denunciar abusos de poder. Não sabemos ao certo quem a financia e de onde vem o seu líder, Julian Assange. A Wikileaks divulgou documentos oficiais sensíveis, nomeadamente correspondência diplomática americana, incluindo telegramas classificados, com efeitos aparentemente péssimos para os interesses dos EUA. Estes documentos foram roubados por terceiros. Não sabemos a quem interessou politicamente o fenómeno, que só é possível porque existe a internet, um território não regulado. Também foi divulgado, para citar um exemplo, o vídeo onde se via o massacre de civis iraquianos filmado por um helicóptero norte-americano. Este incidente (na imagem) foi levado em conta quando foi necessário proceder a uma mudança de estratégia na condução do conflito.
As escutas ilegais do NoW não têm nada a ver com isto. Estamos perante um jornal que espiou sistematicamente cidadãos, incluindo políticos, celebridades e vítimas, um jornal que não cumpriu regras mínimas. Tudo indica que foram cometidos crimes, que a polícia foi subornada, que houve concorrência desleal (o jornal que obtém uma notícia sensacional usando métodos de espionagem está a prejudicar os outros, que cumpriram a lei).
Não consigo encontrar semelhanças. No que se refere ao interesse público das informações, também não há comparação. Wikileaks teve elevado impacto; a doença do filho de Gordon Brown, sinceramente...
Não contente em ter misturado alhos com bugalhos, Helena Matos dedica um terço do seu post a escrever sobre a "indignação exótica" dos portugueses, introduzindo um terceiro tema, as escutas ilegais em Portugal, que considera "um adquirido nacional". Não se percebe a relação com os outros dois temas, mas de facto a paranóia existe. Sabe-se que houve escutas no âmbito de processos (algumas destruídas, outras divulgadas parcialmente em jornais), sabe-se que a polícia usa escutas para tentar recolher provas de crimes. O resto são "vulnerabilidades" e "desconfiança". Pode até ser mito urbano. Helena Matos não consegue dizer quem faz as escutas e quem é escutado. São jornais? Polícias sem chefia? Políticos? Detectives privados à solta?
Mas se eu disser que não existe nada, se não partilhar das certezas da autora sobre a existência de escutas ilegais em Portugal, não estarei a dizer uma blasfémia, a contrariar o mito da moda, repetido mil vezes em ambiente quase místico?
Mas imaginemos por um instante que há mesmo escutas ilegais em Portugal. Foram divulgados na net segredos diplomáticos portugueses com base nelas? Então, qual a relação com Wikileaks? Há tablóides a publicar notícias com base nessas escutas? Então, nada tem a ver com o caso NoW. De que fala a autora de blasfémias?