Poderes furtivos
Compreendo esta opinião de Luís Rocha, em Blasfémias. Por outro lado, escapa-me o sentido deste tipo de comentário, que sob a capa de ironia blasé insinua que o actual governo já está a fazer tudo mal. Os ressabiamentos da direita são inúteis para tentar compreender a realidade.
Mas se lermos com atenção este despacho de uma agência especializada, começamos a entender melhor o envolvimento.
Portugal não parece ter controlo sobre a sua realidade financeira, o que se comprova pela atitude de uma agência de rating de baixar a notação da dívida para classificação de lixo. Mas vejam bem a declaração de Angela Merkel, perdoem a má tradução: "É importante que a troika (UE, FMI, BCE) não deixe perder a sua capacidade de decidir". Em resumo: a chanceler alemã reconhece que as agências de rating podem mandar mais do que o conjunto formado por UE, FMI e BCE. Quem são as agências de rating? Ninguém sabe ao certo, mas parece que representam uns tais mercados financeiros que, pelos vistos, estão num pânico desenfreado. Elas associam Portugal e Grécia, aparentemente ignorando que o plano de austeridade da troika, em Portugal, tem o apoio de quatro quintos do país, estando resolvido o problema da estabilidade política, ao contrário do que acontece na Grécia.
Reparem na outra frase, de uma fonte da comissão, segundo a qual as notações das agências de rating são "self-fulfilling prophecy" ou pescadinhas de rabo-na-boca. Se eu profetizar que isto vai acontecer, a minha profecia produz o acontecimento.
Não há fuga possível: eles decidiram que vamos à falência, logo dão-nos uma nota que nos leva à falência. Fazem isso para defender os interesses dos investidores, prejudicando os investidores.
Mas a análise das decisões das agências de rating (e esquecendo as direitas e as esquerdas que andam todas contentes com os problemas crescentes do país) leva-nos mais longe. O plano da UE de permitir aos seus bancos que facilitem o pagamento da dívida grega, aliviando a situação do governo de Atenas (que não consegue pagar a dívida), foi recebido pelas agências de notação com ameaças de ser considerado default encapotado. A Grécia não pode pagar e não pode ter nenhum alívio no pagamento. A ajuda externa não serve, uma decisão da zona euro não serve. Do ponto de vista dos investidores, a única saída para a Grécia é sair do euro, catástrofe para a Grécia que será também catástrofe para muitos investidores. Isto é racional?
Não consigo lembrar-me de nenhum outro exemplo de humilhação colectiva dos europeus nestas proporções. É preciso, na realidade, recuar a 1956 e ao fiasco do Suez para assistir a um episódio semelhante. Só que agora não são os Estados Unidos a tirarem o tapete aos neo-colonialistas europeus, mas umas agências de notação com poder inacreditável que pretendem fazer uma gigantesca transferência de riqueza, depenar países inteiros e deixar algumas potências nucleares com as mãos atadas.
Escrevi recentemente um post que inclui uma reflexão sobre as possibilidades do futuro e que julgo valer releitura. Estes episódios da crise do capitalismo estão inseridos nessa reflexão. Em 1929, a crise foi dura e prolongou-se por uma década, mas havia sistemas alternativos, o comunismo e o fascismo, cujo desafio forçou os poderes financeiros a agirem de forma racional (arriscavam-se a perder tudo). Desta vez, a crise está a arrastar-se furtivamente, em espasmos de pânico, não havendo desafios ideológicos no horizonte. E este é um problema, pois à falta de alternativa, o capitalismo ainda parece invencível, sem o ser de todo.
legenda da imagem: agências de rating recusam-se a apoiar plano europeu (forças da UE não conseguem sair da praia)