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Albergue Espanhol

"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

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"-Já alguma vez estiveste apaixonado? - Não, fui barman toda a minha vida." My Darling Clementine, John Ford.

O Creme Compensa

Quando tinha dezasseis anos deu-me na mona inscrever-me numa daquelas organizações de intercâmbio de estudantes. O programa era conhecido por AFS, a sigla para “American Field Service”. Havia, no entanto, a velha teoria, assente em evidências comprováveis a olho nú, de que a tradução mais correcta para as três maiúsculas seria “Another Fat Student”.

 

A verdade é que em Agosto de 88 descolei para a América com toda a ligeireza da juventude e que, em Julho de 89, entrei no avião de regresso com multa por excesso de peso.

 

Felizmente, os quilos acumulados naqueles 11 meses foram-se esbantendo com os anos mas é certinho que, sempre que regresso aos Estados Unidos, sou assolada por ataques incontroláveis de gula que me fazem ser capaz de mandar abaixo sobemesas onde convivem animadamente amêndoas caramelizadas com manteiga de amendoim e chocolate.

 

Defendo, no entanto, que as memórias se alimentam dos cinco sentidos e que não me chega rever cenários. Preciso mesmo de os provar.

 

Ora na semana passada aconteceu ir a Nova Iorque. E, para mim, Nova Iorque não é só o MoMa e a Broadway e o Blue Note. É a cidade que abarca a maior espécie de porcarias gastronómicas de que há memória.

Eles bem tentam assentar na saudável imagem da “Big Apple”, mas garanto que seria cem vezes mais verosímil assumirem o papel de “Big Apple Pie”.

 

Quem me fala em Nova Iorque fala-me de sanduíches de Pastrami, de Baegles com cream cheese, de Toasted English Muffins, French Toasts, Brownies, Cookies com chunks de everything, enfim, de uma data de delícias que cá ou não existem, ou são comercializadas em versões muito depauperadas.

 

De maneira que, no dia do regresso, quis assegurar a importação, em pequena escala e apenas para consumo próprio, de alguns destes bens. Toca de entrar num Dean & DeLuca e escolher um sortido representativo da doçaria norte-americana, ao qual, já no aeroporto, juntei meia dúzia de embalagens de Reese’s Peanut Butter Cups (os meus preferidos).

 

Monsieur Prieto estava atónito, mas já me conhece e sabe que não vale a pena criar qualquer tipo de contrariedade nestas situações.

 

Fomos cedinho para a fila da passagem pela segurança, que suposemos estar um pandemónio dado o controlo apertado nos aeroportos americanos desde o 11 de setembro. Lá encontrámos toda a azáfama a que tínhamos direito. Tira sapatos, separa aparelhos electrónicos, passa numa cápsula de raio x saída da Guerra de Estrelas, muita instrução em americano, muito movimento brusco. Até que, “Hey you lady, please step up” e vejo uma sósia da Oprah Winfrey a abrir o meu saco de mão.

 

Estando certa de não transportar uma bomba, mantive a tranquilidade até a senhora começar a tirar cá para fora sacos, saquinhos e embrulhos do Dean & DeLuca todos amarfanhados e cheios de nódoas de gordura.

 

Mediante o espectáculo embaraçoso, resolvi recorrer ao humor e dizer-lhe que estava esperançada que ninguém descobrisse que estava a tentar sair do país com aquela artilharia toda. Cúmplice, respondeu-me “Lady, I thought I had a sugar problem until I started this job. You cannot imagine what I see everyday”. E, quanto mais saquinhos abria, mais se ria.

 

Até que chegou ao saco fatal que continha uma bisnaga de creme para a cara que tinha custado para lá de uma fortuna. Estupidamente, com um tamanho superior ao permitido para viajar dentro do avião.

 

Empalideci mas, num assomo de lucidez, pronunciei a única frase capaz de resgatar o creme do caixote do lixo: “you see, it’s a very expensive facial treatment. To compensate that much eating”.

 

Vislumbrei um leve esgar na minha interlocutora enquanto colava um selo na tampa da bisnaga e afirmava, num tom suficientemente alto para todo o staff da segurança ouvir, “ok, ok, it’s medicine. No problem”.

 

Tive vontade de lhe dar um beijo ou, ao limite e num impulso de cumplicidade colesterólica, partilhar com ela um dos meus peanut butter cups.

 

 

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