Calados à espera do desaire
Tenho a maior consideração por vários socialistas. Mas, neste momento, apetece-me destacar três: Ana Gomes, José Medeiros Ferreira e Manuel Maria Carrilho. Foram eles que pregaram no deserto clamando contra a falta de debate interno no PS, alertando contra sucessivos erros de governação hoje evidentes aos olhos de todos e acentuando os aspectos mais negativos do carácter autoritário de José Sócrates - um autoritarismo sem fundamento pois nem sequer pode justificar-se pela competência governativa.
Há outras vozes lúcidas de socialistas - a começar pelo patriarca do partido, Mário Soares - que incluem alguns destacados autores de blogues cuja leitura não dispenso. Mas são vozes demasiado isoladas face ao descalabro dos erros cometidos por Sócrates no Executivo e na própria direcção do partido. O PS, outrora a força partidária portuguesa com mais fecundo debate interno, reduziu-se há muito a uma câmara de louvores ao líder que teve o seu baptismo político como militante da Juventude Social Democrata. O último congresso socialista foi um esclarecedor exemplo de como neste partido hoje não se debate nada nem sequer se admite um erro: é a política a copiar as piores características de certos clubes de futebol, em perpétua e acrítica veneração aos líderes.
Escrevo hoje estas linhas a pensar em 5 de Junho. Por não ter a menor dúvida de que alguns socialistas que não esboçaram o menor reparo ao actual secretário-geral do partido serão os primeiros a exigir a demissão de Sócrates no provável cenário de uma derrota eleitoral. Enquanto Ana Gomes, Carrilho e Medeiros Ferreira iam lançando sinais de alerta, ao longo destes anos, eles mantiveram-se em silêncio ou alinharam mesmo no coro de ladainhas ao líder. Reservavam-se para o momento em que o veriam enfim aparentando alguma fragilidade: a política, como sabemos, é fértil nestas súbitas erupções de heroísmo tardio e em figuras incapazes de esboçar um protesto em tempo útil mas prontas para dar nas vistas mal soa a hora inevitável da mudança de ciclo e do ajuste de contas.
Nesse dia, o jornalismo político, sempre pronto a eleger novos heróis de turno, há-de bafejá-los com o fervor dos holofotes. Por mim, direi o que digo hoje: uma palavra de elogio aos que no PS viram, ouviram, leram - e não calaram. São poucos. Escandalosamente poucos.
Quadro: A Queda dos Anjos Rebeldes (1562), de Pieter Bruegel